Olho pela janela da frente de casa percebo poucas pessoas nas ruas. Todas elas são homens, e me pergunto: onde estão as mulheres? Olho novamente para ver o que fazem lá fora, e evidencio que são os vendedores de lanche em suas bikes, os frentistas do posto de gasolina, o dono da mercearia da esquina, motoboys passando velozmente, homens indo e vindo. Não há crianças passando para a escola e é raro ver pessoas idosas na rua. Será que todo mundo está em casa e só ficaram alguns homens nesse espaço?

Retorno aos meus pensamentos e busco explicações para tal situação. Mulheres em confinamento devido ao que foi estabelecido para efetivar o isolamento social? Onde estão as mulheres? Em suas casas, ou na casa de suas patroas? Trabalhando como caixas de supermercado ou como diaristas? São médicas e enfermeiras nos hospitais? Olho novamente para a rua e reflito sobre o espaço público e as questões de gênero.

O espaço da casa e da rua já foi motivo de estudos em várias ciências em pesquisas que dão conta de explicações sociais sobre a sociedade brasileira e tantas outras. Esses estudos voltam a ser lembrado por mim nesse momento de reflexão. Casa como lugar de mulheres e a rua como o lugar dos homens, cuja explicação se molda nas perspectivas dualistas que corroboram com os binarismos da sociedade patriarcal. A casa é o lugar para as mulheres, crianças e pessoas idosas? E os homens, permanecem nas ruas? O que delimita esses espaços sociais não está exatamente na naturalização de que um deve estar dentro e o outro fora, mas nas estruturas sociais que imprimem ao masculino transitar para fora e ao feminino o recolhimento dos espaços domésticos.

As explicações vêm de diferentes tempos e cristalizam de tal modo essas definições que as naturalizam com solidez quase inabalável. As leituras de obras clássicas de diferentes ciências oferecem tais explicações e condizem com as relações de poder entre homens e mulheres. Há, por exemplo, explicações com bases evolucionistas indicando passagens de modos de produção cujas condições naturais estabelecem às mulheres atividades que permitem conciliar a produção com as realidades impostas pela maternidade.

Desde os primórdios da sociedade humana nesse planeta se tem evidências de que atividades de reprodução do grupo social implicam a divisão sexual do trabalho. Estaríamos ainda hoje repetindo essas mesmas justificativas para as mulheres permanecerem no espaço doméstico nesses tempos? Penso que não é apenas isso, pois o confinamento recomendado pelo Estado, baseado em razões científicas, estabeleceu o distanciamento físico entre as pessoas como uma prática comum. Fiquem em casa! Esbraveja de todo o lado a multidão assustada com a ameaça do vírus COVID 19 (também denominado como Corona Vírus). Mas, ficar em casa não é para todos, pois devido a uma série de fatores sociais há que sair, circular e expor-se aos riscos que esse momento evidencia.

E volto a atenção à minha inquietude: Onde estão as mulheres? E ao invés de observar a rua passo a observar os prédios vizinhos a partir do quintal de minha casa. Vejo mulheres, ouço o burburinho de crianças brincando. Sim, elas estão em casa, mulheres ficam e homens saem (é o que parece acontecer). Observo mais atentamente e percebo que as mulheres nas varandas estão trabalhando estendendo roupas, limpando e, provavelmente, cuidando das crianças em suas brincadeiras.

Há mulheres em casa, mas algumas estão trabalhando como domésticas e não puderem estar com suas famílias nesses tempos de quarentena. Mais uma vez trago em meus pensamentos as explicações da sociedade pela via das Ciências Sociais, pois não há igualdade nesses tempos em que se busca a proteção da saúde e da própria vida permanecendo em casa.

Onde estão as mulheres? Estamos em casa, na companhia de nossos companheiros, filhos, filhas e outros familiares, poderiam afirmar algumas delas. Mas, essa não é a realidade para uma parte considerável da sociedade. Algumas necessitam trabalhar fora e não apenas desenvolvendo tarefas em seus próprios lares. Muitas moram com seus filhos e filhas e é dela a responsabilidade exclusiva do provimento, cuidados com a saúde e educação.

Onde estão as mulheres? Quando nesse momento de pandemia a recomendação é o recolhimento ao ambiente da casa, quem efetivamente segue essa recomendação? Nos prédios onde moram pessoas das classes média e alta, elas continuam a trabalhar como se isso fosse um serviço essencial para as vidas de seus patrões e patroas. Lembro nesse instante da notícia das primeiras mortes de pessoas no Brasil decorrente do Corona Vírus, uma delas era uma mulher, uma empregada doméstica.

Esse e outros episódios me fizeram pensar no passado, não tão distante, da escravidão no Brasil. Trabalhos análogos à escravidão são comuns e revelam que a prática escravocrata permanece como algo desejado pela elite econômica e social brasileira. Se fosse possível, certamente voltaria a prevalecer o trabalho sem remuneração e com toda a sorte de violência contra os trabalhadores e trabalhadoras. Ser escravocrata, racista e com práticas misóginas são, portanto, marcas nem sempre assumidas nas relações sociais no Brasil, mas que estão latentes e prontas para virem à tona a qualquer instante.

O olhar desavisado na rua dá a entender que somente os homens estão circulando. Contudo, dependendo do horário do ir e vir para trabalhar, que ocorre ainda nas primeiras horas das manhãs, são vistas as mulheres movimentando-se para seus locais de trabalho. As mulheres que saem de suas casas para trabalhar em outros lugares estão nos espaços reclusos de outras famílias ou nas lojas e nos estabelecimentos onde ainda permanecem as chamadas atividades essenciais.

Quem fica e quem sai de casa, quem permanece confinado e quem sai para trabalhar? Homens saem e mulheres ficam? Homens trabalhadores saem e mulheres trabalhadoras também saem? Homens pobres e mulheres pobres ficam ou saem? E como no Brasil a sociedade se explica necessariamente pela questão racial, fico me perguntando sobre essas pessoas que não vejo em seus locais de trabalho nos prédios em construção, apenas ouço suas vozes. É inquietante perceber nesse observar a rua pela janela o quanto que há de desigualdade nesse país.

E as mulheres, onde estão as mulheres? Quando em casa e independentemente da classe social, muitas delas sofrem violência doméstica. Ou sentem aumentar a intensidade das mais diferentes formas de violência que se tornaram quase rotina em suas vidas? O espaço da casa nem sempre é o lugar mais seguro e acolhedor. Violadores de crianças estão no mesmo ambiente e tem relação de parentesco próxima com elas, aumentando a proporção de violência a que são submetidas. Ficar em casa, portanto, não é uma situação desejada por muitas mulheres, porque esse não é o espaço mais agradável, seguro e afetuoso.

A casa é lugar para ficar em períodos de Corona Vírus, afirmam profissionais de saúde, cientistas e gestores. E quando não se tem esta opção devido ao fato de quem sustenta a família são as mulheres, estas necessitam sair para o trabalho? E quando a casa é o lugar de morada de seu próprio agressor? Essas questões trazem a desigualdade de classe e gênero (e pelas evidencias irrefutáveis também a desigualdade de raça) como algo intrínseco às dificuldades que são e serão sentidas pela sociedade brasileira nesses tempos.

O espaço público é o espaço no qual os seres humanos manifestam-se na sua condição humana. Seja na casa ou na rua, o espaço público não é apenas o não doméstico, pois ele vai além das fronteiras entre um e outro. No Brasil, mulheres são a maioria das responsáveis pelo sustento da casa. E para sustentá-las elas se lançam em situações de risco elevado, como é o que está ocorrendo em tempos de pandemia. As desigualdades de gênero (somadas às desigualdades relativas à cor e classe) tornam-se mais evidentes, basta olhar pelas janelas, ou para si mesmas.

 

Referências

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

DA MATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Doméstica morre com suspeita de corona vírus enquanto trabalhava para patrões em quarentena. Jornal Esquerda Diário, São Paulo, 18 de março de 2020. Disponível em: <http://www.esquerdadiario.com.br/Domestica-morre-com-suspeita-de-coronavirus-enquanto-trabalhava-para-patroes-em-quarentena>

ENGELS, Friederich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo: BestBolso, ([1884] 2014)

 

Denise Machado Cardoso é antropóloga e historiadora. Atua como docente na Universidade Federal do Pará e no Grupo de Estudos sobre Mulher e Gênero Eneida de Moraes (GEPEM). Desenvolve pesquisa sobre relações sociais de gênero, antropologia visual, educação e cibercultura. Coordena o Grupo de Estudos sobre Antropologia Visual e da Imagem e o Grupo de Estudos sobre Populações Indígenas Eneida Correa de Assis (GEPI).

 

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