No cotidiano brasileiro, nunca estiveram tão presentes palavras como: feminismo, empoderamento, sororidade, feminicídio, misoginia e outras que significam a luta das mulheres por igualdade de direitos e combate à violência. Elas podem ser vistas constantemente nos meios de comunicações e facilmente encontradas nas redes sociais associadas a debates e campanhas relacionadas à questão do gênero.

É nítido que estamos vivenciando um momento de entendimento e conscientização. Entretanto, entendemos que não há como transformar o futuro sem olhar para o passado. Se não soubermos pelo que passaram as ativistas feministas em prol da causa, como exemplos de suas histórias de vida e/ou suas conquistas, não compreenderemos parte do decurso do movimento até a atualidade. Por isso, a importância da preservação da memória do feminismo nacional. Porém, observamos que a inserção e participação da mulher brasileira na política e seus movimentos sociais não são rememorados em políticas de memória.

Mesmo estes movimentos de emancipação no começo do século e atitudes das feministas estarem registradas em diversas publicações oficiais, consideramos ainda ínfima perto do pioneirismo e representatividade destas mulheres. Arriscamo-nos chamar aqui este fenômeno de memoricídio, que consiste na eliminação de todo patrimônio, seja ele tangível ou intangível, que simboliza resistência a partir do passado com a finalidade de modificar a memória histórica (RAMPINELLI, 2013). Apesar dos movimentos ocorrem na cidade do Rio de Janeiro (até então, a capital do país), não encontramos nenhum centro de memória, museu, arquivo especializado, biblioteca, monumentos, nomes de ruas principais, voltados para perpetuação da memória destas mulheres. Sejam elas em conjunto ou em suas atuações individuais.

Observamos que, assim como em outros países, no Brasil há processos do esquecimento e do silenciamento de determinados grupos sociais ou de personagens individuais. Estes casos que não são isolados, podem ser reconhecidos desde a sua colonização até os dias atuais. São atividades recorrentes, que vão à contramão de um discurso de construção de uma sociedade democrática buscando a ampliação da prática da cidadania dos que aqui vivem.

Acreditamos que com uma política de memória do movimento feminista brasileiro, as ações e a história dessas mulheres seriam preservadas e não terminariam na galeria dos esquecimentos como muitos outros grupos. Por exemplo, ao pesquisarmos sobre os arquivos de pessoas da escritora, jornalista e feminista Patrícia Galvão, a Pagu, nos deparamos com algumas dificuldades por conta da fragmentação e descaso com a documentação da mesma. Cerca de três mil arquivos originais da militante tiveram um “final feliz” e encontram-se digitalizados e disponíveis no Centro de Estudos Pagu na Unisanta, em Santos, sob a coordenação de Lúcia Maria Teixeira Furlani. Outra parte da documentação pessoal foi encontrada em sacos destinados à coleta pública de lixo, em uma das ruas do bairro Butatã, na cidade de São Paulo, pela catadora de papéis Selma M. Sarti, durante a coleta naquela região. A mesma entregou os documentos à UNICAMP e em seguida o acervo foi incorporado ao Arquivo Edgard Leuenroth, como coleção Pagu e Geraldo Ferraz[1].  Mas quantas outras não tiveram a mesma “sorte” e continuam desconhecidas pelo público?

Neste artigo, trabalhamos com a ideia de política pública de memória como conjuntos de ações e/ou atividades desenvolvidas pelo Estado podendo ou não ter a participação de entes públicos ou privados, que visam reconhecer a memória de uma sociedade com o intuito de colaborar para o processo de identificação dos grupos sociais. Para implementá-la, é necessário considerar os inúmeros elementos que nos remetem à memória, sejam eles bens tangíveis ou intangíveis; e neste rol de patrimônios, incluem-se os arquivos produzidos por estes movimentos e/ou os documentos pessoais das ativistas incluídas no sufragismo brasileiro. Isso porque os documentos são considerados patrimônio cultural, segundo a nossa Constituição Federal.

Todo esse artifício tem como o objetivo difundir lugares de memória, utilizando a expressão cunhada por Pierre Nora (1993), ao se referir à construção de monumentos, memoriais, museus, centros de memória ou de documentação para perpetuar outras memórias, que não a dos setores hegemônicos.

Mas, logo no início da pesquisa exploratória, observamos uma escassez de documentos privados pessoais das militantes onde poderíamos obter um grande número de informações sobre as mesmas e; sem essa parte de elementos, dificultaria a constituição de uma política memorial. Desta forma, decidimos traçar uma pesquisa para refletir como a carência de acervos privados pessoais impossibilita os arquivos a serem espaços para a valorização da memória feminista e como fontes para escrita da história.

Esta discussão é necessária para a compreensão do espaço reservado às mulheres nas instituições de salvaguarda de acervos. Enfatizando, assim, a importância e divulgando os arquivos das feministas presentes em instituições públicas para construção da história do feminismo e das mesmas individualmente. Além de contribuir para discussões sobre gênero, memória e arquivos.

Sabendo que, através da recuperação de seus raros registros pessoais, poderíamos auxiliar a desvendar as trajetórias, as produções e a participação dessas mulheres em grupos sociais oprimidos; questionamo-nos quais instituições possuem tais documentos? Em contrapartida, quantos acervos são em relação aos arquivos pessoais de homens?

 

ARQUIVOS PESSOAIS: DELIMITAÇÕES, FUNÇÕES SOCIAIS E SUA RELAÇÃO COM A MEMÓRIA.

 

Concentrar no mesmo estudo os temas: arquivos de pessoas, memória, feminismo e as relações que eles mantêm entre si, não é um trabalho fácil e nem tão pouco simples. É, na realidade, uma tarefa carregada de desafios.

Acreditamos que nossos questionamentos são atuais e relevantes, pois no ano de 2017, ocorreu no estado de São Paulo o I Seminário Internacional Arquivos, Mulheres e Memórias[2], onde o ponto principal foi debater o lugar da mulher na história e nas instituições de preservação da memória, ou seja, já se avançou sobre esta questão da preservação tendo em vista que foi reconhecida sua importância, mas ainda há um longo caminho a ser traçado.

Os arquivos surgiram ainda na pré-história, tendo sumérios e fenícios contribuído para a sua evolução com a escrita cuneiforme e o alfabeto. De acordo com Renato Pinto Venâncio, o surgimento dos arquivos:

[…] abrange períodos bastante remotos, pois a criação dos primeiros arquivos se confunde com o surgimento da escrita e o processo de divisão das sociedades em classes sociais, fenômeno também associado à formação do Estado; em outras palavras, os arquivos surgem como forma de perenizar direitos e formas de poder. (VENÂNCIO, 1998, p. 136)

Por muitos séculos, a Arquivologia serviu como disciplina auxiliar a outras áreas das ciências sociais até a Idade Contemporânea; quando com a Revolução Francesa, a publicação do manual dos arquivistas holandeses e o marco dos princípios mais importantes para a área, conseguiu erguer-se como um campo de estudo independente.

Destacamos as abordagens pós-modernas na Arquivologia, nas quais o arquivo começa a ser entendido como um espaço de poder e saber. O trabalho de Foucault (2009), a “A arqueologia do saber”, incentivou a compreensão de suportes de memória distanciados da ideia de neutralidade. Neste período, iniciaram-se críticas aos autores do campo e aos princípios arquivísticos, em especial a naturalidade; pois agora o documento era visto como um produto conscientemente produzido, fruto de escolhas feitas. E que o arquivista não desempenha papéis neutros e imparciais; e, sim interveem nas escolhas do que será ou não preservado. Cook, arquivista canadense, vai além e afirma que para ele, os arquivistas interferem na memória:

tornaram-se, assim, construtores muito ativos da memória social. Na verdade, afirmaria até que se tornaram o principal agente de formação da memória, sem esquecer das importantes contribuições, nessa tarefa, de seus colegas dos museus, bibliotecas, e cultura material. (COOK, 1998, p.139)

Mesmo que o profissional não determine o que será mantido ou descartado, não podemos eximir os arquivistas da sua importância como agentes sociais; visto que há nos documentos, principalmente nos de valor permanente, uma relevância e potencial informativo muito grande. Podendo, dessa forma, ser possível reconstruir a trajetória com um caráter biográfico como também permitindo estudar não apenas a contribuição de alguns avanços específicos; mas também o ambiente familiar, intelectual e social em que no caso aqui, as ativistas desenvolveram seus trabalhos. Como ratifica Oliveira:

os usos dos arquivos pessoais pela sociedade sem dúvida singularizam a própria constituição e preservação desses acervos. Não são arquivos de homens simples que são recolhidos às instituições de memória por representarem uma época, uma área do conhecimento ou as expressões intelectuais de um segmento da sociedade, mas são arquivos de homens e mulheres que se destacaram ao longo da história de uma sociedade. (OLIVEIRA, 2012, p. 39)

O documento de arquivo sempre é elaborado com a função probatória das ações e atividades de quem os produziu, esta é uma característica nata e permanente dos documentos. Apesar de serem inúmeras as especificidades, o documento de arquivo possui características particulares, independente de sua finalidade, sendo a principal delas a organicidade – relação que o documento de arquivo possui com os demais de mesma proveniência. Esclarecendo sobre os arquivos, Bruno Delmas afirma que:

Os arquivos servem para provar, lembrar-se, compreender e identificar-se. Provar seus direitos é uma utilidade jurídica e judiciária. Lembrar-se é uma utilidade de gestão. Compreender é uma utilidade científica de conhecimento. Identificar-se pela transmissão da memória é uma utilidade social. (DELMAS, 2010, p. 21)

Portanto, os documentos são artefatos necessários para a viabilização de procedimentos e ações; e, concluída suas funcionalidades, servem de prova ou testemunho. O que pode ser alterado eventualmente é o seu uso.

A fim de que não haja nenhuma dubiedade conceitual, esclarecemos que arquivos e arquivos pessoais são os mesmos produtos, o que modifica é o produtor (pessoa ou organismo público/privado). Como esclarece a Drª. Lucia Maria Velloso de Oliveira, uma das autoridades brasileiras no assunto em sua obra Descrição e pesquisa: reflexões em torno dos arquivos pessoais. (2012, p. 34) em que afirma que os documentos arquivísticos, mesmo os arquivos pessoais, são “produzidos para fins de registro, seja da intimidade, das atividades profissionais e de negócios, ou das relações familiares e sociais”. Podemos utilizar ainda exemplos de tipologias documentais dados pela autora, como são os casos dos diários íntimos, que são “o registro cotidiano de expressões dos sentimentos, pensamentos e atividades diárias”, e da carta de amor que “é a expressão dos afetos de uma pessoa pela outra” (COSTA; OLIVEIRA, 2016, p. 119).

Por muitos anos, os arquivos pessoais não foram aceitos na comunidade acadêmica. Apenas recentemente, os acervos de pessoas adquiriram uma relevante posição no cenário do patrimônio documental brasileiro e despertaram nos pesquisadores uma expectativa por permitirem analisar determinado objeto por um viés antropológico, literário e intimista. Para Hobbs (2001), com os arquivos de pessoas é permitido apreender os traços característicos da personalidade de seus titulares; e, por isso, fazendo com que estes sejam mais pesquisados.   São ricos em informações variadas e contribuem para a difusão do conhecimento apresentando outros significados, transformando a sua preservação e conservação em interesse público.

Artiéres (1998) atribui esta valorização ao aumento de doação de manuscritos e dos escritos pessoais para algumas bibliotecas durante o século XX. E com o grande número de instituições responsáveis pela guarda de arquivos de pessoas, facilitou a aproximação destes acervos ao público, desencadeando o interesse em pesquisas.

Como no início, os manuscritos, também conhecidos como arquivos privados pessoais, eram doados em sua maior parte para as bibliotecas. Os mesmos recebiam um tratamento metodológico inadequado, uma abordagem biblioteconômica, talvez este fator tenha endossado a visão de que estes são apenas ego documento (documento de caráter biográfico). Para desfazer esse engano, é necessário que seja reconhecido o extrato das atividades de seu produtor e o que dá sentido a sua condição como arquivo: a organicidade, “vínculo original, necessário e determinado, pelo qual cada documento condiciona os demais e por eles é condicionado” (LODOLINI, 1993).

Ainda é constante na bibliografia da temática, vincular à coerência de acumulação desses documentos a intenção de projetar para a posteridade uma autoimagem de seus titulares perante terceiros. A afirmativa retrocede e desqualifica tais documentos como documentos de arquivo de acordo com a teoria arquivística. Como ressalta Camargo (2009, p.31), “compromete sua organicidade e sinaliza a renúncia ao caráter probatório que sua funcionalidade originária lhes proporciona”.

Reconhecemos que os arquivos acumulados por indivíduos no decorrer de suas vidas se adequam à teoria arquivística  e ressaltamos que estes documentos são produzidos, acumulados e preservados em razão de sua funcionalidade, a fim de auxiliar nas atividades cotidianas no presente, estejam estas relacionadas à família, trabalho e/ou relações sociais com o objetivo de refletir o arrolamento da relação entre os indivíduos (titular do acervo) e o Estado.

Margaret Hedstrom (2010) configura a memória como um campo amplo abordando ora como faculdade cognitiva, ora como fenômeno social. Trabalhando com a segunda perspectiva, destaca-se que a memória é uma tentativa de reconstrução do passado que expressa o interesse de alguns grupos, podendo ocorrer a disputa de memória entre estes.

Inicia-se o “enquadramento de memória” que prioriza alguns fatos ao invés de outros. Este processo que não ocorre de forma aleatória, formaliza a informação que servirá de fonte para a elaboração de uma “memória oficial”; por isso, alguns grupos sofrem opressão e marginalização, tornando as suas memórias subterrâneas. Então se de um lado está a memória oficial com seus fatos, datas e eventos, do outro tem a memória marginal que sobrevive submersa sem grandes expressões e mesmo que uma ínfima parcela de um grupo seja enquadrada, não significa que dê voz a este mesmo grupo na totalidade de suas trajetórias e na consequência de suas ações.

Halbwachs, que em sua obra A memória Coletiva, defende a ideia de que a memória é uma construção social, resultante obrigatoriamente das relações mantidas entre os indivíduos e os grupos sociais por possuir um caráter coletivo. E aprofundado por Pollak (1989), que além de afirmar que a memória transfigurou-se e começou a também ser vista com um objeto de fonte de estudos, ratificou que de fato é uma construção social e acrescenta que a memória colabora para o estabelecimento de um sentimento de identidade; porém, estas lembranças nem sempre correspondem de modo fiel à realidade, transcendendo o espaço-tempo. Nesse sentido, as memórias de modo consciente ou inconsciente podem ser inventadas, projetadas ou distorcidas.

Por isso, convém ter em mente as palavras de Angelika Menne-Haritz (2001): os documentos nos permitem construir a memória, refiná-la, corrigi-la ou ratificá-la sempre que necessário.

O que queremos questionar a seguir é a associação estratégica entre o arquivo e a memória para justificar o caráter do trabalho desenvolvido pelo arquivista, esquecendo e desmerecendo a execução de todos os trabalhos técnicos fundamentados nos princípios arquivísticos. Uma vez que sem os mesmos ou realizados distantes das teorias de arquivo, não é possível obter um produto final de qualidade e sem condições de associá-lo à memória.

Se, para alguns autores, memória e arquivo é uma relação controversa, para outros é indissociável.  Em 1922, Sir Hilary Jenkinson, em A manual of archive administration definiu o documento escrito como uma forma de “memória artificial” (1937, p.23), como uma faculdade cognitiva de recuperar informações com uma intenção prática.

A arquivista canadense Laura Millar, em 2006, questiona se a forma como criamos, guardamos e recuperamos a memória pode ser comparada à maneira como produzimos, preservamos e usamos os documentos? A autora concluiu que os documentos são gatilhos para o processo de memória, eles servem para ressuscitar ou revisitar experiências vividas do passado de um indivíduo ou um grupo social. Os documentos arquivísticos pessoais devem ser encarados como representações, por isso uma das tarefas do arquivista é fazer com que estes documentos cumpram suas funções, para depois serem descritos de forma contextualizada e disponibilizá-los.

Documentos não são memórias: mas, podem ser produzidos com a tentativa de manter evidências, lembrar momentos ou fatos pontuais como, por exemplo, as fotografias e os diários. Contudo é mais viável que datas comemorativas e outras festividades oficiais e não-oficiais remetam à memória mais que aos documentos por si só. O sentimento de pertencimento é resultado da socialização e dos costumes de uma determinada sociedade (ASSMANN, 2011. p.125). Os arquivos estão mais para coadjuvantes desses mediadores sociais por se originarem com a função de atuarem no presente de seu produtor e não no futuro, como afirma Campos:

O arquivo, entretanto, não nasce com qualquer vocação para o futuro, não se afirma, em sua gênese, como “memória do futuro”. Independentemente de sua natureza institucional ou pessoal, serve ao presente, na medida em que seus documentos, pelo estatuto probatório que lhes é congênito, configuram provas ou testemunhos das ações das quais se originaram, viabilizando das atividades do organismo que os acumulou, seja ele um órgão público, uma instituição privada ou uma pessoa comum. (CAMPOS, 2015, p.115)

Esses tipos de arquivos não são acumulados com a finalidade histórico-cultural, mas adquirem uma “monumentalização” ao longo da vida quando são percebidos como parte dos documentos que amparam a memória de uma sociedade. Ganham, assim, outra interface, como patrimônio documental, de memória e cultural.

Pensando então na importância desses mesmos documentos que serviriam como gatilhos para a memória da luta feminista brasileira, começamos a nos questionar a causa do descaso por parte das autoridades com essas fontes primárias. A primeira observação que fazemos de que não é uma realidade exclusiva nossa. Muitas outras autoras internacionais já sinalizaram o mesmo problema.

Inúmeros pesquisadores têm demonstrado e questionado a ausência de mulheres na narrativa da história tradicional e muitos explicam estas ausências como “silêncio dos arquivos” no que diz respeito a trajetórias femininas.

Com a escassez, fragmentação e descaso com os documentos produzidos a partir das atividades vanguardistas do movimento feminista, seguiremos a possibilidade apontada por Perrot no final do século XX em sua obra Práticas da memória feminina (1989) de utilizar os arquivos pessoais das mesmas, porque pesquisar as fontes primárias produzidas pelo gênero feminino no Brasil é tentar resgatar mulheres do passado e reacendê-las no presente. Como nos chama atenção Rosa Montero no livro Histórias de Mulheres:

o  mais espantoso é verificar que sempre houve mulheres capazes de se sobreporem às mais árduas circunstâncias; mulheres criadoras, guerreiras, aventureiras, políticas, cientistas, que tiveram a habilidade e a coragem de fugir – sabe-se lá como! – a destinos tão estreitos como um túmulo. Foram sempre poucas, é claro, em comparação com a grande massa de mulheres anônimas e submetidas aos limites que o mundo lhes impôs; mas foram, sem qualquer dúvida, muitíssimas mais do que aquelas que hoje conhecemos e recordamos.

As dificuldades em acessar estes arquivos que tomamos a liberdade de classificar como “marginais”, levaram a historiadora Michelle Perrot a concluir que há evidências que no século XIX aqueles que dominavam a escritura da história, deixaram pouquíssimos registros que dissessem respeito às mulheres, vistas como categoria destinada ao silêncio. Tais ações resultaram em fontes e informações muito fragmentadas e escassas. Maria Odila Leite da Silva Dias (1984), historiadora brasileira, acredita que a memória social da vida das mulheres vai-se perdendo mais por esquecimento ideológico do que por uma real inexistência de documentos. (p.7).

Como estas ativistas políticas também exerciam suas profissões (escritoras, jornalistas, repórteres, artistas, entre outras), pesquisamos em todos os acervos privados pessoais ou coleções no estado do Rio de Janeiro, uma vez que a militante pode ter ganhado uma visibilidade em suas atividades individuais e não por seus engajamentos feministas.

 

A MULHER CONQUISTA O BRASIL NO SÉCULO XX

 

Faremos uma pequena retrospectiva sobre o movimento feminista no tempo e espaço estudado para justificarmos nosso posicionamento e apresentarmos nossa pesquisa.

Ainda no início do século XX no Brasil, mesmo que timidamente, houve uma ruptura nos padrões com toda uma movimentação de mulheres que mostravam certo grau de conscientização, organização e vanguardismo.

Nos primeiros anos do século XX, a mulher aos poucos encarou sua condição de frente, sem desviar o olhar, de peito aberto. As conquistas na área de costumes, educação e política vieram devagar, com a coragem de algumas pioneiras.

Apesar da dificuldade em precisar uma data de seu surgimento, foi durante a Revolução Francesa que o feminismo adquiriu características de uma prática política organizada e foi neste mesmo período que se publicou diversas brochuras abordando temas como desigualdade legal, participação na política e prostituição. (ALVES; PITHANGUY, 1981, p. 33,34).

As ideias feministas entoadas pelas inglesas desembarcaram por aqui nas primeiras décadas do século XIX, tendo como principais defensoras as escritoras da época. Neste contexto, surgiram em 1827 os primeiros jornais feitos por homens para mulheres e em 1831 já havia mulheres fazendo jornais pelo país, o caso do O sexo feminino (1873 – 1896), jornal de muito sucesso, de propriedade de Francisca Senhorinha da Motta Diniz. De certa forma, estas publicações femininas pavimentaram caminho para o engajamento de tantas mulheres no século XX.

Apesar de ser um conceito amplo com diversas possibilidades de olhares consideramos como feminismo:

o feminismo busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica em que o indivíduo, seja ele homem ou  mulher, não tenha que adaptar-se a modelos hierarquizados, e onde as qualidades “femininas” ou “masculinas” sejam atributos do ser humano em sua globalidade. (ALVES e PITANGUY, 1981, p.9)

E continuam:

o feminismo se constrói, portanto, a partir das resistências, derrotas e conquistas que compõem a História da Mulher e se coloca como um movimento vivo, cujas lutas e estratégias estão em permanente processo de re-criação. Na busca de superação das relações hierárquicas entre homens e mulheres, alinha-se a todos os movimentos que lutam contra a discriminação em suas diferentes formas (ALVES e PITANGUY, 1981, p.74)

Por considerarmos a primeira metade do século XX um momento de ápice para o feminismo brasileiro, seja pela conquista de direitos ou pelo ganho considerável de visibilidade, nossa pesquisa se restringiu ao período de 1900 a 1950, concentrando a busca por documentos pessoais de militantes atuantes em três movimentos específicos, são eles: Partido Republicano Feminino (PRF), Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) e União Feminina do Brasil.

O século 20 encontrou a nova geração de feministas com algumas conquistas na bagagem e, sobretudo, o justo desejo de serem cidadãs por inteiro. Influenciadas pelo avanço das mulheres em alguns cenários internacionais, elas tentavam popularizar suas reivindicações. Nas primeiras décadas do século, conviveram com os movimentos de esquerda emergentes e com as primeiras greves operárias.À luta pelo direito ao voto somaram-se novas causas. As mulheres enfrentavam os preconceitos da vida social e política brasileira. (SCHUMAHER, 2007, p.125)

 

UMA PESQUISA FRUTÍFERA, MAS NEM TANTO

 

Com o objetivo de mapear os arquivos privados pessoais de ativistas feministas do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX (1900-1950) para endossar uma política memorial dos movimentos de luta em prol das mulheres contanto que através da história de suas militantes, analisamos as instituições do estado do Rio de Janeiro que possuíam em seus acervos arquivísticos fundo de arquivos pessoais ou coleções de inúmeras personalidades brasileiras atuante em diversas áreas. Pois como já afirmado antes, os documentos pessoais dessas mulheres poderiam ser acessados por suas profissões e não atuação feminista. Sendo assim, localizamos um total de dez órgãos dentro do perfil da investigação e a partir de então, acessamos a base de dados de todos e consultamos seus instrumentos de pesquisa (Guia), para que identificássemos seus fundos e coleções.

Descobrimos, dentre seus acervos, quais tinham a tipologia documental interessada. Seguem o nome da instituição e o nome do acervo, fundo ou coleção pesquisado: Arquivo Nacional – Acervos Privados; Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – Coleção; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro – Coleções Particulares; Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Fundação Getúlio Vargas) – Arquivos Pessoais; Centro de Documentação e Informação (Fundação Nacional de Arte) – Coleções; Instituto Moreira Salles – Acervos do Departamento de Literatura; Academia Brasileira de Letras – Acervos Arquivísticos; Biblioteca Nacional – Acervo de Manuscritos; Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (Fundação Casa de Rui Barbosa) – Fundo e Coleções e Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro – Coleções Particulares.

Em um universo de 1.217 de fundos/coleções, 1.022 são de homens, 107 de mulheres, 25 de famílias e 63 de instituições/empresas e outros. Dos 107 de mulheres, apenas três coleções são de feministas atuantes no Rio de Janeiro no período pesquisado. Vejamos:

 

Os acervos das três feministas localizados foram: Arquivo Eugênia Álvaro Moreyra (Arquivo-Museu de Literatura Brasileira), Coleção Maria Werneck de Castro (Biblioteca Nacional) e Coleção Nise da Silveira (Biblioteca Nacional). Todas fizeram parte da União Feminina Brasileira, tendo inclusive ficado detidas juntas na Sala 4 da Casa de Detenção do Conjunto da Rua Frei Caneca em dezembro de 1935.

A diferença quantitativa de acervos fica visível no gráfico a seguir:

 

Outros acervos de feministas (*) também foram encontrados e, mesmo que não estejam nas datas-limite examinadas, divulgamos aqui para ajudar a disseminar a memória dessas mulheres. São eles: Coleção Ana Maria Batista e Coleção Antonieta Campos da Paz, ambas integrantes do acervo do Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro. As duas mulheres eram filiadas ao PCB, participantes de movimentos feministas e atuaram na segunda metade do século XX.

Não poderíamos deixar de acentuar dois fundos que não são privados particulares, porém podem conter documentos pessoais de feministas dentro do seu conjunto. São: Fundo Federação Brasileira pelo Progresso Feminino do Arquivo Nacional e o Fundo Polícias Políticas do Rio de Janeiro do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

O primeiro contém documentos referentes às ações do FBPF e as relações que Bertha Lutz mantinha com outras feministas de outros movimentos, como o clássico exemplo das cartas trocadas entre Lutz e Maria Lacerda de Moura revelando assim um pouco mais de cada uma. E o segundo possui em seu conjunto documental com os prontuários, organizados pela Polícia, contém fichas de identificação, termos de declaração, fotografias, relatos de investigação e resumo das informações relativas à Intentona Comunista de 1935 e à Aliança Nacional Libertadora; e considerando que a União Feminina do Brasil era diretamente ligada a esses dois movimentos, há uma probabilidade de existirem documentos referentes a estas mulheres neste fundo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Constatamos que das listas dos acervos e coleções consultados via internet, apenas aproximadamente 9% são de mulheres e 3% dessas mulheres foram feministas declaradas e atuantes. Ou seja, ratificamos a suspeita que tínhamos que os arquivos pessoais tanto das mulheres, quanto feministas são menores comparados aos dos homens.

Ao longo da nossa busca, não conseguimos descobrir o porquê de tamanha desigualdade, apenas suposições baseadas em leituras sobre a temática em que as historiadoras europeias afirmam ser fruto de articulações premeditadas com a intenção de silenciar esse grupo ou desmerecer as vitórias obtidas por elas. De fato, se dependesse apenas dos documentos para tentar recuperar as histórias e a memória desses grupos, teríamos uma grande lacuna temporal.

Não pretendemos finalizar nossas investigações. Esta foi “a ponta do iceberg” de nossos questionamentos, pois continuaremos buscando respostas de como podemos contribuir para que aumente o número de aquisições e de doações de fundos e coleções de titulares mulheres em especial para as feministas da primeira metade do século XX a fim de que, dessa forma, tenhamos uma quantidade plausível de documentos com o intuito de aumentar o número de fontes de pesquisa sobre o gênero e auxiliar para a perpetuação da memória das lutas das mulheres.

 

Bárbara Moreira Silva. Mulher, bruxa, feminista e mãe. Mestra profissional em Memória e Acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa. Pós-Graduada (Lato Sensu) em Políticas de Informação e Organização do Conhecimento pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. E graduada em Arquivologia pela UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Todas as suas pesquisas tem como ênfase acervos arquivísticos de/sobre feministas da primeira metade do século XX.

 

[1] Escritor, jornalista e crítico literário brasileiro, segundo marido de Pagu.

[2] O evento aconteceu entre 28/03/2017 a 31/03/2017. Disponível em http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/i-seminario-internacional-arquivos-mulheres-e-memorias. Acesso em 08 jan. 2018.

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