Imagem: bykellymalka

Dentro de poucos dias completam-se quatro anos desde que fui expulsa da casa da minha família. Das muitas coisas que ouvi durante a última briga com minha mãe, os gritos dela de “eu pari um homem e ele não existe” ecoam como vultos na memória ainda hoje. Não sei se concordo totalmente com ela, porque de fato não acho que cheguei em algum momento da minha vida a me ver como homem, mas com certeza fui um menino. Pelo menos fui um até aquela outra noite em que ouvi as mesmas palavras saírem da boca dela, em um tom de tristeza e raiva, pela primeira vez, e comecei a gritar em meio a lágrimas que sim, ela estava certa, eu não era um homem. Eu era qualquer outra coisa menos homem.

É complicado falar sobre essas coisas, porque as vezestenho a impressão de que é esperado de uma pessoa transfeminina que ela tenha sempre na ponta da língua um esboço detalhado de toda sua vida, dá infância à maturidade, que explique passo a passo o motivo de se entender trans — ainda que essa narrativa não seja universal entre nós, já que, ao contrário do que a cisgeneridade prega e acredita, transgeneridade (ou transexualidade) não é uma coisa homogênea. Também não quero dizer com isso que eu acredite totalmente que esse tipo de interrogatório seja diferente para pessoas transmasculinas, mas parece existir um tom mais incisivo na pergunta quando ela é direcionada, principalmente, a mulheres trans, travestis ou não-binárias que não saíram do armário aos quinze anos de idade — como se fosse fácil assim.

Depois de ser expulsa, vaguei de um lado a outro, até me estabelecer na Zona norte de São Paulo, e desse momento em diante me vi cercada de pessoas trans no meu círculo social e de amizades. Ainda que nem sempre tão prazeroso, tudo isso foi muito divertido. E no meio dessa diversão, eu acabei percebendo melhor aquelas coisas que me arranhavam por dentro há tanto tempo, toda vez que minha mãe gritava pra mim que queria o filho homem que criou. As pessoas mais próximas de mim são testemunhas de como eu vivia falando como “ficava muito mais a vontade” em meio da galera trans, do que em ambientes predominantemente cisgêneros. Em certo ponto, um amigo chegou até mesmo a me chamar de cis de Taubaté, por acreditar, de um jeito confortável para mim, que eu só estava tentando encontrar meios de não aceitar o fato de que não era cis.

Parabéns, Lêx, você acertou. E a essa altura você já sabe disso.

Eu de fato estava desesperada e com muito medo. Porque conviver com pessoas trans é bem diferente de dar rolê com pessoas trans. Eu via amigos, amigas e amigues lutarem diariamente contra o mundo e, as vezes, contra si. Disforias, transfobia, o terror misturado às lágrimas de medo e felicidade quando se entendiam trans. A incerteza em relação a família, o desemprego, a fome. A solidão. Fui colo para travestis enquanto elas pariam a si mesmas algumas vezes, e é dificil por em palavras as coisas que sentia vendo elas durantes aquelas noites. De igual forma, eu usava esses colos para minhas lágrimas, quando a catuaba e a cerveja barata subiam a cabeça, e eu por algumas horas gritava que não era homem e apenas me dizer bixa não era suficiente. Foi um processo lento e doloroso, mas finalmente, ano passado, eu consegui expor ao mundo o que as pessoas próximas, que acompanharam e acompanham essa minha odisséia, já sabiam: eu sou qualquer coisa, menos cis. E digo qualquer coisa como alguém que ainda não sabe exatamente o que é, porque essa é a única certeza, e não sentimento, em mim.

Veja, eu tinha uns problemas dentários bem complicados (eu sei, não parece relacionado, mas você precisa entender dos meus dentes). Fui dentuça durante toda minha vida, e nunca tive muita oportunidade ou grana para cuidar deles por várias questões que não cabem aqui — talvez em outra escrita, quem sabe. No começo do ano passado finalmente tive condições de começar o tratamento e os resultados imediatos foram bem… inesperados. Meu rosto, que eu tanto odiava e tinha nojo, mudou muito e pela primeira vez na me pegava passando horas tirando selfies e mais selfies, me olhando no espelho, experimentando cortes novos de cabelo, barba e bigode, como nunca antes. Pela primeira vez eu estava aprendendo a gostar de mim, como se uma pessoa nova tivesse nascido e eu precisasse urgentemente conhecê-la. E isso bugou demais minha cabeça.

Essa mudança física aconteceu pouco tempo depois de eu ter aceito que era, definitivamente, trans e começava a me acostumar com pelo menos esse pequeno conforto dentro de mim — ficou tão mais confortável deitar a noite sabendo que ao menos essa parte de mim havia se resolvido. Mas a confusão voltou quando o meu rosto mudou, porque por algum motivo eu passei a me ver tentada a brinca um pouco mais com esse rosto novo e suas nuances que me deixavam, de uma forma irônica, a vontade com a masculinidade que sempre tanto odiei.

E foi aí que deu merda. “Uma pessoa trans designada homem ao nascer, mas que tá de boas com parecer um homem? Que piada” ouvi uma vez de uma mulher trans branca, depois que postei no facebook que queria ser tratada no feminino. “Agenero? Não-binária? Tenho algumas questões com isso, você ainda é lida como homem”, ouvi pouco tempo depois de outra, em um rolê no centro. “Você me deve explicações, porque isso é banalizar a dor de mulheres trans que tanto sofrem nesse país”, me disse outra mina trans branca. “Isso de não-binariedade não existe, você é um homem”, disse um homem trans. “Pelo menos tira essa barba”, me disse outro. E por aí vai. No período de poucos meses que saí do armário, perdi a conta de quantas vezes fui xingada, cobrada ou simples exposta por ter apenas dito que estava finalmente me entendendo trans e começando a pensar em como lidar com a minha transição.

E seria muito hipócrita da minha parte dizer que não entendo exatamente de onde vem essa repulsa disfarçada de crítica, que essa galera direciona pra mim mesmo sem nem me conhecer. Posso não concordar ou achar que isso é no mínimo decente. Mas eu entendo. É muito tentador achar que sabe tudo sobre alguém baseado apenas em uma foto de perfil. E eu mesma disse ali em cima que estava brincando de tirar fotos da minha recém confortável masculinidade.

Mas veja, isso tudo que narrei foi em um espaço de alguns meses. Três no máximo. E é isso que me incomoda.

Qual o problema em deixar uma pessoa trans que acabou de se aceitar levar o tempo dela, pra pensar o que quer pra ela e pro corpo dela?

Eu conheço e sou amiga de mulheres trans e travestis que no começo da transição se diziam não-binárias. Conheço não-binários se diziam homens trans. Outres que eram byxas e agora se orgulham da sua travestilidade. Boycetas que eram agênero. Agêneros que agora são homens trans. Algumas dessas pessoas se hormonizam, outras fizeram ou querem fazer cirurgia, outras não querem nada disso. Em comum apenas o fato de que todes se permitiram, com calma e paciência, refletirem sobre o que queriam ou não pras suas identidades e corpos da melhor forma que lhes cabia e fosse confortável. E escrevi tudo isso só pra dizer: é isso que a gente precisa.

Eu quero muito isso, sabe. Quero olhar pra esse texto daqui a alguns anos e ver se cheguei a lugar algum ou em lugar nenhum, mas eu preciso pelo menos tentar. Tem sido ruim me sentir culpada por não ser trans o suficiente, ou entrar na internet e ler discussões que se dizem crítica mas na verdade são só tentativas desesperadas de filtrar quem pode ou não reivindicar o, nesse contexto, romantizado título da transgeneridade para ser aceito no nosso meio. É bizarro pra mim quando percebo que me sentia mais bem recebida em alguns espaços quando me viam como um homem cis ou bixa preta, mas agora os mesmos espaços estão cercados por sussurros sobre gente como eu (vulgo baby trans — acho fofo esse termo) estão ou não apenas fetichizando a causa, ou seguindo tendências, ou apenas querendo se vitimizar como também cheguei a ouvir de uma travesti branca.

Tipo, eu não precisaria me assumir trans pra sofrer. No mínimo, segundo vocês, eu sou vista na rua como um cara gay negro e isso por si só já me levou a tantas violências tão absurdas, que eu não tô afim de colecionar mais cartinhas nesse Yu-gi-oh das opressões. Eu não me entendi e me assumi trans pra formar um Exódia, eu me assumi trans porque isso diminuiu um pouco da dor que eu sentia tanto o tempo todo. Só quero ficar na minha e morrer em paz. Todes nós queremos. Mas não consigo entender como vigilância, cobrança, chacota e exposição pode fazer alguém como eu ficar a vontade. As vezes eu só choro e fico me perguntando se vale mesmo a pena tudo isso, se não é melhor voltar pro armário. Ao mesmo tempo acho que pensamento sou eu mesma cobrando de mim mesma o que algumas tanto tem cobrado de outras pessoas trans que acabaram de sair do armário, ou que talvez nem saíram há tão pouco tempo assim do armário, mas leva sua identidade e transgeneridade em outro ritmo.

Porque sim, eu sofro todo dia com disforia, mas eu to encontrando meu jeito de lidar com ela. E Talvez eu me hormonize, até acho mesmo que quero, talvez eu mude minhas roupas, e eu realmente quero e pretendo quando for po$$ível, talvez isso e aquilo e etc. Mas só quero ter certeza que realmente quero e não que vou tá fazendo por pressões que nem entendo. Empatia é tudo que peço. O mundo já é pesado demais e ele já tá a ponto de explodir.

Por favor, tenha um pouco de paciência e nos dê um tempo para crescer.

Nossos processos são diferentes, nós somos pessoas diferentes, mas no fim a gente quer a mesma coisa.

A gente só quer viver.

*Este texto foi originalmente publicado no Medium “7/4” e reproduzido aqui com autorização.

Santana C. é uma pessoa negra e não-binária, social media e escritora. Escreve sobre cultura pop, sua relação com a transgeneridade e questões LGBT sempre com viés racial. Twitter: @7barra4

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