Na última semana, circulou nas redes uma suposta carta que Frida Kahlo teria escrito ao Diego Rivera, seu marido, terminando a relação. Um desfecho perfeito para muitas admiradoras e admiradores da artista mexicana, uma vez que ao longo de sua vida Frida Kahlo sofreu pelos machismos do pintor.

No entanto, há várias suspeitas sobre essa carta. A carta nem mesmo foi usada para Frida terminar o casamento, como está sendo dito nas redes sociais, pois os dois permaneceram juntos até a morte da pintora.

Primeiramente falarei das referências bibliográficas e num segundo momento dos escritos de Frida Kahlo sobre Diego Rivera nos últimos 10 anos da sua vida. Não vou me deter ao relacionamento no primeiro casamento (eles se casaram duas vezes), para mantermos o foco dessa possível carta, já que foi escrita supostamente em 1953.

 

 

QUANTO ÀS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

O trecho dessa suposta carta costa em dois livros: “Frida Kahlo: La artista que convirtió su obra en icono de la lucha femenina”, de Ariadna Castellarnau, de 2019 e “Cartas Extraordinárias – Amor”, de Shaun Usher, de 2020.

O primeiro livro parece ser uma bibliografia mais romantizada e o segundo é um compilado de cartas de diversas pessoas. Quanto ao primeiro livro, não encontramos notas de rodapé da origem dos documentos de Frida Kahlo que ela utiliza na publicação. Não consultei as referências bibliográficas do segundo, mas possivelmente o autor tenha extraído do primeiro livro ou de algumas matérias de sites que a carta consta.

Quanto aos sites que a carta é publicada, a maioria tem algo em comum: apresentam várias outras cartas que a Frida escreveu ao Diego com imagens das cartas originais ou com referências de fonte das cartas. Porém, esse escrito de 1953 não possui imagem da carta original e também não possui referência de algum livro ou estudo sobre a origem dela.

Antes da busca nesses dois livros e nos sites, consultamos livros que considero uma fonte segura de documentos e cartas originais de Frida Kahlo. E esta suposta carta não está em nenhum desses livros:

  • Frida. a biografia – Hayden Herrera
  • Cartas apaixonadas de Frida kahlo – Martha zamora
  • Diário de Frida Kahlo
  • (Re)leituras de Frida Kahlo, por uma ética estética da diversidade machucada – Edlla Eggert
  • Frida Kahlo: mujer, ideología, arte – Eli Bartra
  • Faces of frida – google arts e culture (esse especial do Google de 2018 foi feito com várias instituições inclusive com os museus Frida Kahlo, Diego Rivera. há muito conteúdo inclusive alguns artigos sobre cartas)

 

Essas publicações são relevantes por vários motivos: 1) trazem notas de rodapé da origem dos documentos históricos de Frida Kahlo; 2) alguns dos livros são documentos originais de Frida reimpressos; 3) são publicações com caráter de estudos, ou seja, as autoras/os autores refletem sobre a vida da artista a partir dos seus documentos e se afastam do objetivo comercial das vendas (afinal, Frida está POP e super consumível); 4) alguns dos livros são parcerias ou tem autorização dos principais museus de Frida.

Tais informações: – não há referência bibliográfica segura sobre a origem da carta; – não há fotografia da carta original; – a carta não está nas publicações mais minuciosas e relevantes; levam a suspeitar a veracidade dessa carta.

Pergunto também: essa suposta carta traz questionamentos sobre a relação de Frida com o Diego que confrontam os outros escritos, cartas, pinturas feitas por ela em relação ao pintor na mesma época (últimos anos). Por uma carta com um conteúdo tão relevante não está em publicações chaves da vida de Frida?

Além disso, deve-se levar em conta também que explodiu de publicações sobre a vida de Frida Kahlo nos últimos anos e a maioria com pouca pesquisa. Muitas vezes biografias romantizadas que trazem falas como se fossem da artista, idealizando uma Frida com características que sejam palatáveis ao consumo.

Outra questão importante para suspeitar da carta: essa não é a primeira vez que há suspeitas da veracidade de supostos documentos (carta, escrito, foto, gravação de voz) de Frida Kahlo. Você por acaso já deve ter se deparado com uma foto falsa, por exemplo, ou a polêmica do áudio encontrado na Fonoteca Nacional do México ano passado com a possível voz de Frida Kahlo.

A Fonoteca Nacional havia apresentado uma gravação de 1953 com a suposta voz da artista e com relatos de testemunhas que confirmavam o áudio. O evento contou com coletiva de imprensa nacional e internacional. Dias depois, o Museu Frida Kahlo se pronunciou desmentindo a gravação também com testemunhas, mas que não acreditavam que era a voz.

Esse episódio sugere que o fato de uma editora ter reimpresso um livro com a suposta carta não garante a autoria da carta pela pintora.

Além de tudo, entramos em contato com a autora Edla Eggert da PUCRS (autora de um dos livros) que contatou a professora mexicana Eli Bartra da Universidade Autônoma do México (que também já escreveu livro e tem vários estudos sobre a Frida). Para Eli, deve-se pesquisar, mas acredita que não a carta não foi escrita por Frida Kahlo.

 

quanto aos DOCUMENTOS ESCRITOS POR FRIDA KAHLO NOS ULÍTIMOS ANOS DE SUA VIDA SOBRE A RELAÇÃO COM DIEGO

 

Os últimos anos da relação (correspondente ao segundo casamento) de Frida Kahlo com Diego Rivera foi uma montanha russa de sentimentos e fatos, assim como foi o primeiro casamento.

Há algo, porém, que chama atenção, diferentemente do primeiro casamento. Frida Kahlo passou a tratar Diego como um filho, um pai, um namorado. Há páginas do seu diário e pinturas que ela transparece desenvolver um amor maternal por Diego. Há uma história de que Frida comprou brinquedos para boiar na banheira e esfregar o marido com esponjas, como um menino.

Quem lê pode se sentir até mal ao se deparar com essas passagens ou visualizar essas pinturas, pois sabemos o quão canalha e machista Diego foi com Frida. Mas esses escritos e pinturas trazem a complexidade da relação deles. E, assim, demonstram também o cuidado que temos que ter em não julgar apenas com o olhar se foi uma relação tóxica e/ou abusiva.  Não queremos dizer que a relação deixou de ser violenta para Frida, ao mesmo tempo em que há outros elementos para analisar essa relação.

A própria sexualidade da Frida é algo pouco explorada. Existe uma entrevista que a cantora Chavela Vargas deu antes de morrer falando sobre a Frida.  Elas tiveram um caso, mas é pouco falado. Chavela conta que a pintora a amou tanto quanto amou Diego. Ademais, há uma carta que Frida escreveu à cantora, traduzindo a entrega de Frida à Chavela.

Esses fatos e outras cartas de Frida Kahlo aos seus outros relacionamentos, carregadas de intensidade e amor, mostram que Frida reivindicava seu espaço de liberdade na relação com Diego bem como entrava fundo em outras relações. De alguma forma, colocar a Frida num lugar de vítima na relação com Diego faz com que a gente também não perceba a grandiosidade do próprio caminho que ela trilhou nessa relação. A forma como ela construiu suas resistências diante do machismo de Diego e da estrutura patriarcal de uma relação.

Os relacionamentos de Frida e Diego, pra além do casamento dos dois, nem sempre foram compreendidos como traições, pois os dois questionavam a estrutura de casamento.

Isso não queria dizer também que a pintora não sofreu com os envolvimentos extras de Diego, como foi com sua irmã Cristiana. Há um relato de uma amiga de Frida afirmando que apesar da pintora desconstruir várias questões do casamento, ainda assim sofria com o envolvimento de Diego com outras mulheres. Sempre surgia uma ferida nova.

Frida reconhece o quão difícil era se relacionar com Diego. Em 1949, no catálogo que acompanhou uma exposição de Diego Rivera no Instituto Nacional de Belas Artes, Cidade México, ela parece justificar ainda assim o porquê de alguma forma se manteve com ele.

 

“Algumas pessoas provavelmente esperam que eu pinte um retrato muito pessoal do Diego, “feminino”, anedótico, engraçado, cheio de reclamações e até mesmo de uma certa quantidade de fofoca, uma fofoca “decente”, que possa ser interpretada e usada de acordo com a curiosidade mórbida dos leitores. Talvez se espere que eu me lamente sobre “como se sofre” vivendo com um homem como Diego. Mas não creio que as margens de um rio sofram por deixar o rio fluir, nem que a terra sofre pela chuva, nem que o átomo sofra quando descarrega sua energia…para mim, tudo é naturalmente compensado. Dentro do meu papel, difícil e sombrio, como aliada de um ser extraordinário, tenho a recompensa de um ponto verde dentro de uma massa de vermelha: a recompensa do equilíbrio. As tristezas e alegrias que governam a vida nesta sociedade, podre com mentiras, na qual eu vivo, não são minhas. Se tenho preconceitos e as ações dos outros me prejudicam, até mesmo as do Diego Rivera, assumo a responsabilidade pela minha incapacidade de enxergar com clareza, e se não tenho nenhum, devo admitir que é natural que as células vermelhas do sangue lutem contra as brancas sem o menor preconceito e que esse fenômeno significa apenas saúde.”

Esse escrito e outros documentos comprovam as reflexões que Frida fazia sobre Diego, e a coloca no espaço de um ser pensante que cria suas resistências.

 

CONCLUSÕES

Pode ser que a carta exista, pode ser que a carta seja mais um documento criado por outras pessoas que imaginaram os sentimentos de Frida. Mas cá está criado mais um documento incógnita de Frida Kahlo. Assim, sempre que você quiser compartilhar algum escrito, alguma foto, alguma pintura de Frida Kahlo, vale a pena dar uma conferida, pesquisar se de fato é real. Até porque há um processo de esvaziamento da vida de Frida Kahlo e de suas referências políticas e culturais para ficar palatável ao consumo.

Para além, essa carta traz o aprendizado de que imaginar desfecho perfeito dessa relação, faz com que não enxergamos uma Frida produtora das suas resistências e ferramentas de confrontar Diego. Não queremos dizer também que essa relação deixou de ser abusiva. Quando miramos o olhar para a complexidade da relação com Diego, afastando-a dessa personagem heroína construída com idealizações nossas, nós a aproximamos das experiências reais das mulheres que também criam suas formas de desafiar e resistir às violências machistas. E nem sempre essas formas são como julgamos que devem ser.

A idealização de mulheres que nos antecederam a fim de transformá-las em nossas heroínas, dentro de uma perspectiva de perfeição e coerência que queremos para nós mesmas, distancia-as de sua vida concreta. É preciso ter cuidado e atenção na recordação das suas memórias, para não transformá-las em algo que elas não viveram.

 

Paula Cervelin Grassi, é formada em Licenciatura em História, Mestra em Educação e artesã do empreendimento solidário e feminista Marias Lavrandeiras.