Há um tempo, durante meu processo terapêutico, deparei-me com uma questão que mudaria completamente o modo como me auto perceberia: que a doutrina religiosa em que fui criada mais me anulava do que preenchia. E não foi nada fácil chegar a isso. Lembro-me ter ficado patinando sobre o assunto durante um ano até chegar o momento em que me rendi e me aprofundei. Na época cheguei a escrever uma carta de reflexão a mim mesma que me ajudou a fechar a decisão de me afastar da igreja que frequentei desde que nasci.

Estive bem amparada pela minha psicóloga durante esse processo, mas não posso negar que foi não algo solitário, pois as pessoas que passam pelo mesmo caminho não costumam conversar sobre isso, principalmente as que saem da igreja em que eu frequentava, a Congregação Cristã no Brasil. Sair significa que você perdeu tudo, a felicidade e paz em vida, e após a morte.

Mesmo assim, era algo que eu queria muito compartilhar com as outras pessoas, exatamente por ser muito difícil e solitário. Quando decidi escrever não contava que teria uma ótima representatividade em rede nacional. Sim, estou falando sobre Gilberto Nogueira, ou Gil do Vigor, uma pessoa maravilhosa que, graças ao Big Brother Brasil, tivemos a sorte de conhecer.

Gil sempre que pode fala sobre sua experiência dentro de uma doutrina cristã e a sede que tinha em vivenciar sua própria vida do jeito que quisesse. Ele é homossexual e durante muitos anos escondeu e tentou se adequar aos padrões cristãos de comportamento exigidos. No início do programa, ele sempre ressaltava a insegurança que sentia devido às escolhas feitas, sentia medo de não sentir Deus, de sentir-se desamparado e sozinho. E isso em sua fala foi o que mais me afetou pois tinha sido meu principal medo também e, antes de sair da igreja, vivia me questionando: será que há vida?

Creio este ser um dos principais questionamentos de alguém que, criado na igreja evangélica, se percebe não mais contemplado. Dá-se principalmente por conta do terrorismo psicológico que alguns líderes religiosos impõem sobre a juventude através do medo. Sim, quando se nasce e é criado sob uma doutrina cristã evangélica, o mundo é essa imensidão desconhecida que fomos ensinados a estarmos, porém, sem sermos parte.

Histórias horripilantes de quem ultrapassou o limite não faltam: Fulano que deixou a igreja e perdeu todos os bens materiais, como se ser crente te desse o poder de flutuar acima das mazelas sociais. Ciclano que pecou e foi tomado pela depressão, como se não acometesse também fiéis, já que é a doença mais incapacitante do mundo, e como se o adoecimento mental, na verdade, não fosse consequência do tratamento vexatório e da perda de sua rede de sociabilidade e de apoio por descumprir dogmas abusivos.

Contudo, o discurso que sempre me incomodava era a interpretação de uma passagem bíblica, algo como tudo ocorrer igual a todos, aos crentes e aos não crentes, mas os primeiros teriam o consolo de Deus. Para além de toda a problemática desse discurso — porque se todos estamos num mesmo sistema capitalista e somos pobres e proletários, a maioria do público evangélico. Além de estarmos sendo oprimidos do lado de fora, estamos sendo sedados pela “vontade de Deus” no lado de dentro — afetava-me pela vulnerabilidade que me fazia sentir, essa falsa sensação de segurança em algo superior. Quem quer ser infeliz? Quem quer se sentir abandonado por Deus? Por isso sentia medo de sair, me arrepender no dia seguinte, querer voltar e, não podendo mais, viver infeliz e vazia o resto da vida. Imagina viver sem o consolo de Deus.

Algo que notava é que sair da igreja nunca era comunicado como um ato intencional, e sim causado por um terceiro elemento – o diabo ou qualquer criatura mundana -, que fazia a pessoa pecar. Então, antes de tudo, tive que me conhecer e fortalecer o suficiente para poder dizer que saí porque quis, por não ser mais meu lugar e que nem Deus, nem diabo mandavam no meu destino.

Sentia medo de ser infeliz fora da igreja, mas não significava que era feliz dentro. Percebi que viver uma vida de anulação me era mais doloroso do que não ter o consolo de Deus. E acabei por perder minha fé nesse ser superior e pintado de intocável demais, intolerante, sarcástico e manipulador. Qual foi minha surpresa, após todas essas provocações, ao não me sentir vazia? À medida que o temor a esse Deus saia, empoderava-me e no fim permaneci plena da força correta.

A igreja é o Éden, sabe? O Jardim do Éden é um lugar lindo, iluminado, perfeitamente planejado conforme a vontade de Deus. O mundo é esse desconhecido, o acaso de desgraças, o abismo, quando na verdade, é apenas uma estrada com uma surpresa a cada esquina, boa ou não, descoberta apenas se dobrar o quarteirão.

Sinceramente, não sei se todos esses conceitos religiosos são verdades ou mentiras, o que eu sei é que ninguém tem o direito de controlar mentes e corpos alheios baseado num livro contextualizado numa época longínqua que atualmente não faz mais sentido. Aliás, retornando as referências bíblicas, se fosse para controlar os outros, por que Deus não destruiu Adão e Eva após comerem o fruto do conhecimento? Ao contrário, ele os liberou para o mundo. A saída do Éden é uma libertação, não uma condenação. Claro, tornaram-se sujeitos de todas as intempéries da vida. E por que isso seria ruim? Se ter dor de parto é o preço que se paga pela autonomia do próprio destino, que seja.

Se tem algo de verdade nesse mundo de invencionismos é a gente. Que entre todas as mentiras que tivermos de encarar diariamente, que não seja a que nos anule. Nós somos de verdade, nossos desejos são de verdade, nossos corpos são verdadeiros. E no fim, é essa a verdade que importa.

Há vida.

E vida com abundância.

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