Infelizmente já comecei assistindo a nova série original da Netflix com um gostinho agridoce. Apesar de tudo ali ser batido, é a fórmula mágica para fixar olhinhos adolescentes sem acesso a esse universo luxuoso e glamoroso, de looks perfeitos, boho chic parisiense, alta costura. Enchendo o coração dos saudosistas dos universos elegantes de Gossip Girl e Sex and the City. Admito, sou uma entusiasta da fórmula. Mas sobre o agridoce…

Nada contra Lilly Collins, mas infelizmente ela foi o motivo principal do negócio ficar amargo e intragável para mim. Não exatamente ela, mas a figura da mulher branca. Obviamente sei que o problema vai além da atriz, é o que há acima dela: a produção, a indústria. Darren Star, o criador da série, é conhecido por gostar de elencos brancos (rs). É dele Beverly Hills, 90210, Melrose Place e Sex and the City, e que inclusive já foi cobrado sobre a falta de diversidade nas produções. Fez um mea culpa anos após Sex and the City, porque claramente a produção envelheceu mal, dizendo que é um produto de seu tempo, mas chega em 2020 mantendo os mesmos vícios.

Coitado do discurso da Viola Davis no Emmy, tão solitário e abandonado ali no canto, quando disse: “A única coisa que separa as mulheres negras de qualquer outra pessoa é a oportunidade”.

Tendo com bons olhos ou não, é inegável que estamos na época da representatividade, o debate está posto. É desconcertante chegarmos em 2020, pós discurso histórico de Viola, e ainda nos depararmos com a clara divisão de papéis entre mulheres brancas e negras. Onde é aceitável Zendaya ser a atriz negra mais jovem a receber um Emmy por um papel de dependente químico, mas é impensável a mesma, ou até mesmo Amandla Stenberg, ou uma Yara Sahidi, ou uma Lovie Simone ou até mesmo, por que não, Indya Moore interpretar o papel de uma jovem sonhadora e trabalhadora que recebe a oportunidade dos sonhos de trabalhar em Paris. Entende? Não é sobre a falta de atrizes negras competentes e que se encaixariam no papel, cis ou trans, elas estão disponíveis.

“Mas o roteiro é tão clichê, por que lutar por isso?”

Exatamente por isso, roteiros cabeçudos e conceituais tem seu enorme valor e pessoas negras e racializadas vem servindo-os muito bem em sua grande maioria. Mas nem só de explosão intelectual vive o homem, a nossa vida não é apenas conceito com filtro e tons pasteis e é nesse momento que entra os desfortúnios e pieguices diárias, é no clichê que mora o imaginário popular. Clichê por clichê, uma jovem negra dependente química também o é.

Aliás, temos um belo exemplo brasileiro recente mostrando com todas as letras que dá pra quebrar o clichê inserindo uma figura não imaginada para o papel. Alice Júnior. É a história de uma jovem de classe media alta, filha única que vive apenas com seu pai, um perfumista que recebe o encargo de criar um perfume com uma matéria prima nativa do sul do país. Com isso, o mundo e a rotina da jovem mudam drasticamente ao sair da ensolarada Recife, mudar-se para um Sul frio e estudar num colégio católico, porém permanece sonhadora a respeito do seu maior desejo: seu primeiro beijo.

Feche os olhos e pense nessa história, como você imagina essa personagem? Branca, magra, hétero e cis. É isso mesmo. E se eu te contar que Alice Júnior é uma garota trans? Percebe a quebra de imaginários? A ruptura do clichê?

“Ah mas é muito difícil para quem sempre escreveu sobre gente normativa.”

Olha, desculpa, mas a partir do momento em que se propõe a produzir histórias com visibilidade, você tem que ser uma pessoa do seu tempo. Há dois motivos para não se escrever protagonistas racializadas e LGBTQIA+: Falta de interesse e ausência de convivência com diversidade. Ambos soam feios e inaceitáveis em 2020, quando o debate sobre diversidade está sendo posto todos os dias nas redes sociais.

Emily em Paris respira ar moderno, juventude, traz a produção de conteúdo nas redes sociais como carro chefe, mas tudo que sinto é cheiro de mofo e naftalina. É uma roupagem de alta costura trazendo tudo de mais velho e ultrapassado: branquitude, heterocisnormatividade, padrão estético normativo… Aliás, estou aqui rindo porque acabo de lembrar do diálogo mais patético sobre monogamia que já vi nesses últimos tempos. Sem contar na energia de rivalidade feminina, disfarçadamente presente. Enfim, tudo de mais velho no rostinho jovial de Lilly Collins.

Tudo bem, para não ser injusta há personagens racializadas e LGBT… Sim, o extraordinário número de dois personagens. Mindy Chen, uma garota chinesa que renega o legado milionário de seu pai e foge para Paris, após um vexame num programa de calouros, para viver sua tal liberdade trabalhando como au pair. Por ai já dá pra perceber uma história bem mais interessante que a da protagonista que parece ter tudo caindo em seu colo de graça. E temos obviamente o gay negro, Luc, que aparece como super crítico da mocinha mas após conhece-la melhor torna-se sua fonte diária de fofocas e frases prontas, e é isso. Não sabemos mais nada sobre o menino. Eu não cheguei a cronometrar o tempo de participação de Luc nas cenas, mas é risível e sua existência é a personificação da voz “você consegue, garota!” num homem negro gay sempre bem vestido.

Mas, enfim, agradeço por viver numa época em que ao mesmo tempo em que produções desconcertantes como essa são feitas a rodo, há também Issa Rae e Michaela Coel produzindo histórias com tanta maestria e qualidade que a única justificativa para ignora-las é o puro racismo, que inclusive atrelado a transfobia causa apagamento, nas premiações mais importantes da TV norte-americana, das aclamadíssimas garotas de Pose- MJ Rodriguez, Indya Moore e Dominique Jackson, mas isso é um papo para outro dia.

Entende o que quero dizer? Não se deve mais ter espaço para narrativas tão medíocres.

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