Photo by Alireza Dolati on Unsplash / Arte @Brunastica

 

Fui criada assim: para falar doce, não gritar, ser educada, inteligente, agradável. Confesso a você que por muito tempo acreditei que o melhor era existir sem incomodar a ninguém, pois, dessa forma, teria afeto garantido. Antes de falar coisas importantes, de me posicionar, meu coração dispara. Primeiro, eu pondero várias vezes e tento encontrar a melhor forma de evitar algum e qualquer conflito. Você já sentiu essa ansiedade? Por exemplo, medo de não usar as melhores palavras em uma mensagem; de o vácuo ter sido por um motivo pessoal; de pedir para alguém te dar um feedback; achar que está atrapalhando; pensar que o que você fala não é tão necessário ou é grosseiro… Para mim, essa sensação ainda consegue agir de um jeitinho especial quando… estou interessada em alguém. Aí o bicho pega. É nesse tipo de “culpa de não agradar” que focarei nesse texto.

Por um tempo, vou te confessar, achei estar sozinha nessa. Então, me atentei ao drama de tantas amigas em relações heteronormativas que estudavam a melhor forma de flertar sem ficar “muito em cima”; a melhor forma de enviar uma mensagem falando de suas chateações, para não serem ignoradas ou terem a situação piorada. Discutiam entre si a maneira mais eficiente de fazer com que seus desejos fossem atendidos pelos parceiros ou, ao menos, de conseguirem expressá-los. Medo de incomodar e, com isso, ser rejeitada. Afinal, quem quer uma mulher irritante?

Mês passado uma amiga me mandou mensagem que seu ficante esqueceu do aniversário dela. Essa foi só a cereja do bolo de uma cascata de atitudes frustrantes da parte dele. No grupo de amigas, ela explicou o quanto aquilo a chateou e como gostaria de dividir isso com ele. Mas para isso, ela demorou dois dias até conseguir escrever alguma coisa. Quando de fato se sentiu pronta para compartilhar seus incômodos, pediu primeiro que eu e mais três amigas déssemos nossas opiniões quanto ao conteúdo para que ela não o chateasse com seus sentimentos. Depois de quebrarmos nossas cabeças para escrever um texto que falasse apenas do que ela “sentiu” e não apontasse dedos, recebemos dias depois uma resposta que dizia“sinto muito se você se sentiu assim. Mas acho que exagerou uma tonelada”. Ontem outra amiga me contou estar frustrada pela forma que era tratada por um menino com quem se relacionava, mas sempre que ela contava para ele que estava chateada, se sentia ainda pior, pois era ignorada… como se ela o afastasse.

Ainda na pré-adolescência, escutei de minhas amigas todo um manual de comportamento que precisávamos seguir para atrair um namorado, a boazinha que, ao mesmo tempo sabe ser “sexy”, quando apropriado. Nessa época, nosso grupinho de meninas se reunia para fazer inúmeros testes de revistas teens que apontavam: “você é a namorada ideal?”, “você sabe agir em um encontro?”; ou matérias de “como conquistá-lo”. Cara leitora, você pode vir aqui e dizer, “que exagero”! Pergunto: você nunca recebeu conselhos de como manter ou atrair um homem? Nunca recebeu algum estímulo que dissesse para ser acima de tudo meiga e não questionar? Ou seguir o mandamento do famoso “bora”? Em que dizemos “vamo” sem nem saber aonde. Ser a garota legal, como definiu a escritora Gillian Flyn no livro Garota Exemplar: “Os homens sempre dizem isso como um elogio definitivo, não é? Ela é uma garota legal. Ser a garota legal significa que sou uma mulher gostosa, brilhante e divertida (…). Gostosas e compreensivas. A garota legal nunca fica com raiva; apenas sorriem de maneira envergonhada e amorosa e deixam seus homens fazerem o que quiserem. Vá em frente, merda, eu não me importo, eu sou a garota legal.”

Monólogo “Garota Legal” do filme “Garota Exemplar”

Alguém pode discordar de mim, dizer que mulheres opinativas, inteligentes são super atraentes! Temos aí a Elizabeth Bennet do grande romance “Orgulho e Preconceito” (amo) que sempre falou o que pensava. Mas quanto a mãe não a recriminava por ser assim? Quanto ela era “única” justamente por falar exatamente o que pensava enquanto todas as outras personagens não? Um estudo publicado em 2015 na revista Personality and Social Psychology Bulletin concluiu, basicamente, que mulheres inteligentes afastam os homens… Ou melhor eles dizem que se atraem por elas, mas na realidade não. Bom, o que é a inteligência, se não o domínio de argumentos consistentes? De opiniões, e assim, podendo levar mais facilmente a um conflito de argumentos? Ou quantas mulheres não temem incomodar seus parceiros com o sucesso profissional delas?

Se revelarmos ainda o nosso lado irritada, sustentarmos o que incomoda… pobres mulheres raivosas, corremos o risco de escutarmos que estamos  “exagerando” ou que somos simplesmente histéricas, ou, Deus nos livre, “a chata”.  Para a mulher preta então, esse quadro ainda é mais delicado, como aponta a pensadora norte-americana Audre Lorde, em que a sociedade é muito mais agressiva em desconsiderar/anular a sua existência, e que sofre com muito mais estereótipos associados à raiva. No livro “Women, Anger & Depression” de Lois Frankel,  a escritora coloca que muitas mulheres não conseguem expressar seus sentimentos de raiva de forma saudável, simplesmente porque não dá para saber algo que nunca foi ensinado, com o qual não se é familiar.

Não ajuda a aliviar essa ansiedade a sensação de inferioridade incutida nas mulheres em relação aos homens. A escritora feminista estadunidense Andrea Dworkin nos pontua no livro “Intercourse” que essa ideia não é algo banal, mas uma construção profunda e destrutiva. O afastamento da mulher de um lugar de amor-próprio, de completude e de se sentir íntegra. Para mulheres, a inferioridade foi associada com uma condição natural — com a própria natureza do feminino desde o nascimento. Essa sensação quebra o respeito que a pessoa tem por si e a ideia do amor que ela pensa merecer. Como a escritora coloca: “suas experiências ou percepções pessoais nunca são creditadas como tendo fundamento concreto na realidade. Ela, no entanto, nunca é amada o suficiente. Na verdade, objetivamente: ela nunca é amada o suficiente.”

Por fim, preciso confessar, ainda não tenho um conselho bem formulado quanto a isso. O receio que muitas mulheres têm de incomodar é tão internalizado e construído ao longo do tempo que eu mesma ainda estou entendendo suas camadas. A auto-culpa pelas reações desproporcionais recebidas.

O que posso compartilhar com vocês é que ser a boazinha garante inúmeros confortos externos, e é provável que mais pessoas permaneçam ao seu lado. Pois é uma mulher que não incomoda. Na verdade, em tantas ocasiões se faz quase imperceptível. Ao se libertar do papel da “garota legal”, indo atrás de desejos, e, com isso, atravessar conflitos, pode-se ter como resultado afastamentos. O que quero nos perguntar é:  no fim, preferimos mesmo prejudicar nossa saúde mental, nos desgastarmos de tanto nos modificarmos; nos reduzirmos; nos silenciarmos, para cabermos em situações que são dolorosas? Só para garantir o afeto de alguém — que não o seu?

Editado por Bruna Rangel e revisado por Júlia Zacour.

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