As mulheres têm levantado sua voz por onde passam. Em 2017, “Feminismo” foi escolhida a palavra do ano pela dicionário americano Merriam-Webster. No cinema, a coisa não poderia ter sido diferente nos últimos anos: foram discursos inspiradores, denúncias a homens poderosos do cenário cinematográfico e premiações que trouxeram à tona o trabalho primoroso realizado por mulheres e o sexismo que impede a disseminação dessas obras.

Com a resistência como palavra de ordem, temos na história do nosso país alguns exemplos de mulheres que lutaram pelo seu espaço nas telas. Entre esses nomes está o da diretora Tereza Trautman, primeira cineasta do Cinema Novo, censurada pela ditadura aos 22 anos com o filme “Os homens que eu tive”, de 1973.

pôster do filme "os homens que tive"

 

A película conta a história de Pity, interpretada por Darlene Glória, uma jovem carioca que possui um casamento aberto, tendo relacionamentos com outros homens e mulheres. No filme, a personagem principal é casada oficialmente com Dôde, mas tem um caso fixo com um amigo de seu esposo. Quando o trio começa a morar sob o mesmo teto, Pity começa um novo romance com Peter, e se apaixona por ele. O triângulo original, então, se separa, e a mulher passa a viver com seu novo namorado. O relacionamento também não dá certo e Pity vai morar com sua amiga Bia, e decidem, após um tempo morar em uma casa coletiva, no bairro Santa Teresa. Os moradores do local decidem começar uma viagem pela América Latina, restando apenas Pity e Torres. Eles então engatam em um romance, e, com vontade de ser mãe, a protagonista engravida. Dôde então reaparece e, após conversar com sua esposa e Torres, decide dar seu nome à criança. Um novo triângulo, então, é formado.

Pity havia sido pensada originalmente para a atriz Leila Diniz, ícone da liberdade sexual feminina à época, porém ela morreu pouco tempo antes do começo das gravações aos 27 anos. Após alguns testes, a escolhida para interpretar o papel foi Darlene Glória, anos mais velha que Leila. Tereza teve, então, de adaptar todo o roteiro e trocar os personagens para que se adequassem ao novo universo da protagonista.

 

 

Ao passar pelos censores, em primeiro momento, o filme foi avaliado como “película com conteúdo amoral, baseado no adultério”, mas liberado para maiores de 18 anos, com alguns cortes, e chegou a ser capa da Folha Ilustrada. Alguns dias antes de sua estreia, porém, o filme teria recebido uma denúncia, que levou à sua reavaliação. Mesmo com os cortes exigidos e com a alteração do nome, mudado para “Os homens e eu”, a obra foi proibida. A avaliação, agora, era a seguinte:

“Filme amoral, pornográfico em sua mensagem, debochado, cínico, obsceno que tenta com enredo mal feito justificar a vida irregular de mulher prostituída. É um libelo contra a instituição do casamento, considerando como tal todas as investidas irregradas da insaciável mulher.

É uma afronta à moral e aos bons costumes, em que pese os interessados terem subtraído os poucos palavrões existentes.

É o mesmo filme que já foi objeto de exame e posterior interdição (Os homens que eu tive), tendo sido, apenas, mudado o nome. A bem da moral, bons costumes, à [sic] instituição do casamento, à [sic] sociedade, das pessoas normais e de bem, somos pela NÃO LIBERAÇÃO [grifo original]”.

Apesar de apresentar cenas de nudez e palavras de baixo calão, o que mais incomodava aos olhos dos agentes do AI5 era o comportamento da protagonista: fora dos padrões considerados adequados para as mulheres. Em seus relacionamentos que não deram certo, Pity nunca demonstrou incômodo ou arrependimento por seu comportamento sexualmente livre.

Entre os filmes censurados na mesma leva de “Os homens que eu tive”, estava “Toda nudez será castigada”, de Arnaldo Jabor, que possuía conteúdo imagético semelhante ao da obra de Trautman. Algum tempo depois foi liberado, estando em 1977 em processo para ser exibido na TV. O que diferenciou a decisão entre as duas obras? O comportamento das personagens femininas: enquanto Pity era o centro das decisões de sua vida sexual, sendo naturalmente livre, com poder de escolha sobre seus parceiros e sem estar sob a sombra de um homem, no filme de Jabor as mulheres com comportamento considerado libertino à época são mostradas como deveriam ser tratadas socialmente: produto de consumo masculino. Exemplo disso é a sugestão de alteração do nome “Os homens que eu tive” para “Os homens e eu”, onde a personagem principal fica em segundo plano e deixa de apresentar caráter ativo.

Com a impossibilidade de abordar temas políticos e sociais diretamente sob o regime instaurado pelo golpe militar, Tereza adotou o lema “o pessoal é político”. Livre, fora dos padrões heteronormativos e do comportamento considerado ideal para as mulheres, Pity poderia incentivar as espectadoras a adotar uma conduta semelhante.

Para além do conteúdo do filme, vale ressaltar o marco que Trautman representava ao ser a primeira cineasta a produzir dentro do chamado Cinema Novo e, aos 22 anos, levar às telas uma personagem com temática como essa.

A consequência de seu posicionamento foi cair no índex da ditadura e receber a alcunha de “interditável” enquanto durou o AI5, tendo outros três projetos boicotados. Com o risco de terem suas obras censuradas ao levarem o nome de Tereza, parceiros desistiam das produções e, ainda, suas participações em montagens de episódios de séries tinham os episódios picotados pelos censores.

O próximo filme da diretora seria lançado apenas em 1987, com o título “Sonhos de menina moça”. A obra recebeu convites para mais de 20 festivais internacionais. Esta foi a última aparição de Tereza Trautman como diretora.

Logo após esse período, com o governo Collor e o fechamento da Embrafilme, o Brasil passou por um período de crise e escassez de produção cinematográfica. Hoje, a cineasta se dedica à produção de conteúdo para um canal da TV fechada.

 

Stéfanie Bernardes. Jornalista, fotodocumentarista, artista visual e graduanda em Psicologia. Feminista, mochileira intermitente, apaixonada por cultura popular e agroecologia. Instagram: @stfn.bernardes

 

Referências:

OS HOMENS QUE TIVE. Direção: Tereza Trautman. Rio de Janeiro: Ipanema Filmes, 1973. Produções Cinematográficas Herbert Richers. Thor Filmes Ltda. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-k9j7Ocjzwk>. Acesso em 10.09.2020.

UFSC ENTREVISTA. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7Z56qKTvU3A

VEIGA, Ana Maria. Tereza Trautman e Os homens que eu tive: uma história sobre cinema e censura. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/71671

VEIGA, Ana Maria. Uma história de cinema e censura durante a ditadura brasileira: entrevista com Tereza Trautman. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v23n3/0104-026X-ref-23-03-00839.pdf

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