Photo by Debby Hudson on Unsplash

 

Talvez seja paranoia minha — e se for, tudo bem, porque sou cheia delas — que você ficou meio a fim de mim. Tudo ficou nas entrelinhas, e sempre fica. Essa semana tive uma conversa com a minha “guru”, minha avó, que me contou, durante um telefonema, um defeito meu, que eu mesma não sabia; não assim, sendo nomeado. Ela me disse: “ — Minha filha, você tem um defeito: você avança demais os sinais. Não é assim. Tem que ser mais difícil. Você esquece suas qualidades, que é uma mulher inteligente, estudada, bonita”. Pá! foi uma ficha que caiu que eu até fiquei meio puta com o meu psicanalista que durante esses seis anos nunca disse algo assim, nesse tom, com tanta simplicidade e que poderia mudar o rumo do regime de pensamento ao qual eu estava, inconscientemente, presa e cometendo uma série de atrocidades, no que diz respeito às relações afetivas.

As coisas pra mim sempre aconteceram meio assim: fico louca pra ir em tal evento, ensaio roupa, cor de batom e até o texto que vou dar pra uma personalidade com a qual posso me deparar, afinal, uma mulher “bonita, inteligente e estudada” nada mais é do que a composição desses elementos todos com uma boa dose de humor e carisma. Pois bem. Não bastando toda essa antecipação, na hora simplesmente me dá um cagaço ou uma brochada master que culmina numa vontade de desistir. Isso já aconteceu, inclusive num festival internacional em que fui convidada para debater gênero e política com uma intelectual importante (e minha amiga) e depois de ter me arrependido de não ter ido — pelo compromisso e importância dos desdobramentos que se deram ali -, sempre que estava prestes a desistir de algo passei a me perguntar o que eu perderia se não fosse e lançava um “não vai ter volta. Você tem que ir!”; isto posto, foi assim que decidi ir ao encontro literário em que você estaria presente. Mesmo nervosa e não querendo dar pinta, fui. Tava um frio do cacete em Sampaulo, passei antes pra ver um amigo, no meio do caminho, a quem eu precisava entregar uns livros e que, generosamente, me levou uma cerveja, a fim de que eu pudesse beber durante o caminho pra aliviar a tensão que seria de ter que encontrar você naquele sábado frio e chuvoso; a única condição que ele me impôs, mediante àquela cortesia era não exagerar para que eu não perdesse a compostura e pudesse lembrar de como teria sido o encontro pra contar no dia seguinte, isso porque recentemente saí pra jantar com uma cineasta-gata e, de tanto vinho que tomamos, só consegui lembrar que ela tinha piercing nos mamilos e que tínhamos ido a algum hotel ali na Augusta, que nem me lembro qual foi, enfim, detalhes de uma história que pode ficar pra outro texto.

Cheguei com quinze minutos de atraso, propositalmente. Isso porque não queria demonstrar ansiedade; queria sentar longe, observar tudo de longe, não sendo notada. Para minha decepção, mesmo com o meu pequeno atraso, ainda estavam nos últimos ajustes para começarem com a abertura do evento literário, o mesmo em que tinha você como centro para dissecar sua última obra, recém-lançada. Logo eu, que não queria ser notada, ao me aproximar da plateia para me acomodar, com as demais pessoas que chegavam, cruzo direto com o seus olhar, que rapidamente disfarço, fingindo não ter percebido, olho pro outro lado e me acomodo, sentando razoavelmente perto, em uma fileira próxima ao palco, que, no entanto, não permitia que nos olhássemos diretamente — o que de alguma forma me confortou de tal constrangimento.

Fiquei próxima ao bar, onde pude sair em alguns momentos pra comprar mais cerveja e “dar oi” a umas amigas escritoras que iam chegando. Ao saber que sua esposa estava presente me passou pela cabeça sair à francesa, como de costume, pra não correr o risco de ser desagradável com o que me acusam ser (sedutora) potencializada com umas quatro Heineken, e que afirmo categoricamente que “só se for inconsciente”, entretanto, optei por mais uma cerveja e pelo exercício da elegância e dos bons modos, aguardando até o final do evento para te cumprimentar e parabenizar pela indicação do livro a um dos prêmios que estava concorrendo.

O evento acabou e dali vem o início da cordialidade ou do que é ser escritora homenageada: fotos, agradecimentos aos produtores, editores, entrevistas, autógrafos…

Enquanto isso, fui ao encontro de Helena, sua esposa, que estava ali, sozinha; a mulher da homenageada da noite, observando tudo, esperando tudo aquilo acabar para, enfim, tê-la única e exclusivamente para si. Aproximei-me com algum comentário engraçado, que a fez rir, rapidamente nos entrosamos e estávamos conversando sobre política, eleições, machismo na aviação até que você apareceu, me cumprimentou, estendi a conversa a você e realmente fiz ali o teatro da não-tímida, falando pelos cotovelos, reunindo toda essa minha articulação engajada num assunto relevante, com boas doses de humor e já trocando as palavras graças a meia dúzia de cervejas que eu havia tomado naquela altura do campeonato. O fato é que eu já tinha chegado no meu limite ali (com as cervejas) e fiz um deslocamento inteligente, ao me aproximar de Helena, sendo total sororidária (inventei agora, tá?) ao todo. Não posso pedir desculpas por ter sido eu mesma e me utilizar da cerveja pra justificar o meu comportamento talvez inadequado (é, me atrapalhou no encadeamento das ideias durante a conversa entre nós três), mas só queria dizer que apesar de você estar numa relação monogâmica, eu cismei que algo ficou no ar e por isso não podemos nos ver novamente. Porque eu fico boba em pensar em te encontrar e aí preciso tomar uma cerveja, mas se eu tomar uma cerveja talvez altere (novamente!) minha capacidade cognitiva, talvez comprometa a minha fala, no sentido literal, e eu estou sentindo que há algo no ar…

Fui naquele tal encontro literário

 

Bruna Malaquias é jornalista, paulistana, ativista LGBT e uma das fundadoras da #partidA feminista.

 

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