(dedico esse texto a toda mulher negra que conjuga o verbo amar com outra mulher negra)

 

“Para mim, você é a África

No seu amanhecer mais brilhante”

(ANGELOU, 2020, p. 34)

 

Basta um café com leite na xícara da avó. Bolachas e mel. Retalhos de poemas escritos na madrugada de insônia. Um raminho de folhas de amora, no copo com água, colhido no alvorecer do dia. Café da manhã na cama.

Cenas de um cotidiano afetivo entre duas mulheres negras – e a sociedade não está preparada para isso.

A construção imagética das relações afetivas entre mulheres negras esvazia a suavidade e a delicadeza. Como se o sensível, o palpável e a amorosidade não compusesse as narrativas alegóricas das performatividades entre lésbicas negras.

Há um imaginário social de que a sociabilidade lésbica negra não desfruta das sutilezas cotidianas. Como se a contemplação do simples, do rústico e do agridoce da vida não nos pertencesse.

Ilude-se quem acredita que no âmbito privado não há espaço para a poesia. Existe. E ela por si só se compõe. Mas a sua maneira de escrever tangencia o que pensamos ser o cotidiano lésbico.

A escrita desse dia a dia vai muito além da romantização das relações homoafetivas. O peso racial sobressai também na construção dos afetos entre duas mulheres negras.

O enredo dessas subjetividades perpassa pela interseccionalidade. As amarrações de cada elemento identitário, que uma mulher negra lésbica traz em seu corpo, podem ser os próprios empecilhos que sabote uma relação afetiva/sexual entre si.

São muitas as problematizações e desconstruções que uma negra lésbica precisa se despir para se revestir de outras significações subjetivas.

Nossa maneira de ser e sentir o mundo não nos foi permitido com liberdade. As castrações, os controles e os dispositivos dos nossos corpos são as principais inimigas de nós mesmas na busca – idealizada e colonial – pelo amor romântico.

Essa ideação de amor safo, construída socialmente, trouxe para a mulher negra lésbica frustrações consciente e inconscientemente do não alcance dos nossos desejos.

Rejeição. Impotência. Repressão e regressão social afetiva são marcas trazidas desde as embarcações. E esses queloides também são tocadas e sentidas nas primeiras construções de afetividade entre negras lésbicas.

Entretanto, nem toda mulher negra consegue tocar em suas marcas ancestrais e assumir mais um marcador social da diferença. Portanto, não cabe o processo de “cancelamento” por não ter um posicionamento afirmativo sobre sua sexualidade.

Há uma jornada complexa e sensível pela qual uma mulher negra precisa atravessar para se auto perceber e se auto descobrir lésbica.

Um caminho que exige muito mais dororidade, acolhimento, cuidado e dengo. Menos dedo apontado, rótulos e marcadores.

É preciso considerar as mediações que ocultam o processo de florescimento de uma mulher negra em estado de autodescoberta afetiva e sexual.

Nossa maneira de sentir, desejar e amar vai muito além de um script de 90 minutos. Não cabe nos fetiches patriarcais e pouco se compõe notas musicais.

Estamos (re)construindo nosso próprio mapa-múndi. Potencializando nossas potências para tudo aquilo que nos foi tirado – inclusive os desejos devotos e gozosos entre duas mulheres negras que se amam.

29 de agosto é para lembrar que existimos, resistimos e gozamos do amor preto.

 

Referência bibliográfica

ANGELOU, Maya. Poesia completa. Tradução: Lubi Prates. SP: Astral Cultural, 2020.

 

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