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Cada vez mais discussões em torno do abolicionismo penal tem ganhado destaque na mídia, no debate público e acadêmico. Trata-se de uma corrente política que visa deslegitimar a lógica da punição para práticas de delitos e do próprio sistema carcerário, a partir de uma crítica ao direito criminal. Essa perspectiva de pensamento acredita que a centralização da ideia de pena/ou punição, além de ter se mostrado historicamente ineficaz, acarreta em mais malefícios sociais, como discriminação de grupos e pessoas, e não atinge a raiz dos problemas visando sua superação.

Louk Hulsman, criminólogo holandês referência no debate sobre abolicionismo penal, define que o sistema penal existente é um mal social, visto como uma máquina burocrática formada por sistemas hierárquicos que reduzem problemas e realidades humanas a partir de generalizações. O foco do sistema penal é castigar os culpados como única forma de responder a um acontecimento, utilizando-se da privação de liberdade como forma de sofrimento a partir da segregação social, limitação de espaço, vigilância constante, além da maioria dos casos, ambientes com precárias condições sanitárias, de alimentação e higiene.

Há uma crença que o sistema penal se vale de uma justiça igualitária para toda a população, no entanto, na prática o que se observa é uma seletividade da justiça em que o sistema penal é utilizado enquanto ferramenta por e para grupos que detém poder econômico, social e político sobre a população mais vulnerável, sobretudo pobre e negra, reforçando as desigualdades sociais já existentes. Por este motivo, realizar uma crítica ao sistema penal é atacar a sua centralidade: as prisões. Pensar sob o viés do abolicionismo penal requer questionarmos práticas sociais que são naturalizadas, diversificar nossas formas de resolução de conflitos e romper com estereótipos que dividem pessoas em boas e más, criminosas e cidadãs de bens, como forma de descartar indivíduos e grupos.

 

Prisão para quem?

 

É sabido que a população carcerária no Brasil tem crescido exponencialmente nas últimas décadas: o número triplicou desde os anos 2000 e segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), referente ao ano de 2019, são 773.151 pessoas privadas de liberdade. Apesar destes dados alarmantes, o sistema criminal brasileiro é pouco questionado quanto a sua suposta eficácia e é bastante comum apelos para um maior punitivismo promovido por uma parcela da grande mídia e por parte de setores políticos defensores do armamento civil. Há uma tendência à naturalização das prisões enquanto um destino dado aos infratores, mesmo que o aumento do encarceramento não tenha consequências diretas na redução da reincidência, na ressocialização ou no aumento da sensação de segurança da população.

Quando olhamos para o perfil da população carcerária é possível identificar que ela possui um recorte social específico: segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen, 55% possuem de 18 a 29 anos, 61,67% são autodeclarados negros e 75% possuem até o ensino fundamental completo e mais de 33% são de prisões provisórias, ou seja, que ainda não passaram por julgamento. Há uma relação direta com a estrutura racista de um passado colonial escravocrata e com a criminalização da pobreza, que é a população diretamente penalizada e afetada pelo sistema criminal

Angela Davis, filósofa e ativista dos direitos civis estadunidense, conta como após a abolição da escravatura a justiça criminal rapidamente foi alterada de modo a regular o comportamento da população negra recém liberta. A aprovação dos Códigos Negros proibiam ações como vadiagem, ausência no emprego, quebra de contrato de trabalho, gestos ou atos ofensivos. No Brasil não foi diferente, dois anos após a abolição, em 1980, foi aprovada a criminalização de condutas como vadiagem, mendicância, embriaguez e a prática da capoeira. Ainda nos EUA, a aprovação da Décima Terceira Emenda, permitia a servidão involuntária para pessoas condenadas por essas mesmas leis.

O sistema de justiça penal tem raízes históricas na construção de restrições legais para os recém-emancipados, em que a população negra se tornou o principal alvo das condenações. Segundo Angela Davis, no período que antecede a abolição no Alabama, as penitenciárias eram compostas de uma população 99% branca, e após, com a aprovação dos Códigos Negros, o perfil carcerário modificou rapidamente, o que pode ser considerado como – racialização dos crimes.

Cabe destacar que o próprio conceito de crime é uma construção social, que se altera ao longo da história de acordo com contextos políticos. Quando olhamos para a população carcerária no Brasil, segundo os dados do DEPEN, a maior parte está relacionada à crimes segundo à Lei de Drogas, são 39,42% do total. A chamada “Guerra às Drogas” é narrativa central do encarceramento em massa da população periférica brasileira, que lida cotidianamente com uma abordagem ostensiva em seus territórios e uma criminalização compulsória.

O segundo crime mais praticado, que ocupa as prisões brasileiras, são os chamados crimes contra o patrimônio, como roubos, com 36,74% do total de presos. Já os crimes contra à pessoa, como homicídios, correspondem a apenas 11,38% da população carcerária. O sofrimento e a punição causadas pela privação de liberdade para atos infracionais não evitam futuras condutas a partir de uma proposta de reeducação, ressocialização, ou de oportunidades de emprego e escolarização, da mesma forma que não traz reparação para as vítimas.

 

Abolicionismo penal: uma forma de interpretar o mundo

 

Não há respostas simples e saídas únicas para um problema tão complexo quanto cultura punitivista da justiça criminal, cujas raízes se ancoram no racismo desde o período da escravidão e que constroem nossa forma de pensar socialmente. A simples punição para a pessoa considerada culpada por um delito, não traz uma solução para que aquela prática não volte mais a acontecer.

Entendemos que conflitos são inerentes em qualquer sociedade, fruto da convivência com a diversidade e a simples exclusão e isolamento de pessoas em condições sub-humanas, além de não trazer benefícios sociais e resolução de conflitos, acarreta em mais violência, sobretudo para a dignidade da pessoa acusada. Não é oferecido apoio, escuta, outras possibilidades para que a responsabilização sobre os atos de fato aconteça, o que se oferece é dor, sofrimento, penitência, além da marginalização e da criação de rótulos que limitam as pessoas aos atos cometidos.

É por isso que ampliarmos o debate sobre abolicionismo penal tem sido uma necessidade como meio de visualizarmos outras possibilidades de superação dessa lógica de criminalização desenfreada, que atinge a população negra e pobre majoritariamente. Pensar em alternativas abolicionistas, segundo Angela Davis, requer não buscar um único sistema alternativo que substitua a ação prisional, mas em um conjunto de medidas que modifiquem nossa lógica punitivista de pensar e agir sobre crimes e desvios sociais.

Falar de abolicionismo penal não significa romper com o sistema de justiça criminal da noite para o dia. Entendemos que trata-se de uma mudança de visão de mundo, a partir de uma nova lógica de vivenciar e interpretar os conflitos sociais. Um primeiro passo importante, seria em reconhecer, a partir do acúmulo de pesquisas e de dados, que o sistema punitivista e o encarceramento em massa nunca trouxe soluções ou não têm apresentado melhoras no sentido de redução das violências consideradas estruturais, mas ao contrário, tem acirrado as desigualdades sociais.

Outra forma de iniciar essa prática abolicionista é evitar novas criminalizações, a partir da redução da aplicação da justiça penal, e isso requer um amadurecimento social para lidar com conflitos e ampliar os canais de diálogo. Uma possibilidade é pensar nos crimes e delitos sob a ótica da justiça restaurativa, uma forma específica de lidar com conflitos cujo foco não é na punição e culpa dos chamados “ofensores”, mas nas necessidades das vítimas, da comunidade e na responsabilidade de quem cometeu o ato. Neste tipo de justiça, a preocupação é dada para a reparação do ocorrido e nas ações para a responsabilização, e não na pessoa que praticou o ato, cujo intuito não é punir, mas em restaurar danos sociais e comunitários.

Romper com essa lógica punitivista, cuja centralidade se dá nas prisões, requer uma série de alternativas conjuntas, como o investimento em escolas, nos serviços da assistência social, da saúde pública, enquanto pilares importantes para o enfrentamento das desigualdades sócio-econômicas. Ao invés de instituições de controle e vigilância de corpos, é preciso de instituições que ofereçam apoio para quem sofre com problemas de saúde mental e psicológica graves, com a falta de acesso à serviços educacionais, seja profissionalizante ou universitário, ampliar ofertas de lazer e arte enquanto essenciais para uma convivência saudável e potente. Uma questão complexa ocasionada pela desigualdade social não será solucionada com uma resposta simples e singular, é preciso reunir diversas saídas que retire essa ideia naturalizada da punição do indivíduo enquanto única possibilidade ou caminho.

O abolicionismo penal é uma crítica ao sistema criminal punitivista criado no século XX enquanto perpetuador de injustiças e de seletividades que dividem e rotulam pessoas em “cidadãos de bens” e “criminosos”. A lógica de punição tem relação com a reafirmação das estruturas hierárquicas de poder: o poder sobre a liberdade, sobre a vida e até sobre a morte. Enquanto a liberdade, enquanto direito humano essencial, for um valor restrito a alguns que não gera comoção social, estaremos fadados à barbárie.

 

Fontes:

ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça restaurativa e abolicionismo penal. Saraiva Educação SA, 2017.

BATISTA, Vera Malaguti. Paz armada-Criminologia de cordel. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012.

BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? / Angela Davis: tradução de Marina Vargas: – 5ª ed. – Rio de Janeiro: Difel, 2020.

DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império das prisões da tortura / Angela Davis; tradução Artur Neves Teixeira. – 4ª ed. – Rio de Janeiro: Difel, 2020.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Zahar, 2001.

Podcast Justificando #70 Fundamentos: O abolicionismo penal com Vera Malaguti

Infopen – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias

Geopresídios –  Radiografia do Sistema Prisional Fonte: Relatório Mensal do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais (CNIEP).

BNMP – Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (Conselho Nacional de Justiça)

 

Juliana Jodas, é feminista e atua como educadora social com adolescentes que estão cumprindo medida socioeducativa em meio aberto no município de Campinas. É cientista social, com mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) cuja área de pesquisa é educação das relações étnico-raciais, ações afirmativas e inclusão de povos indígenas na universidade.

 

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