Outro dia um amigo se referiu a mim usando a expressão ageless. Ele falou com carinho e admiração — era um elogio —, mas o termo me causou desconforto, e resolvi pensar alto aqui as razões do meu incômodo.

Vamos à etimologia da palavra. Age = idade, less = sem. Ao contrário do sufixo ful, que vem de full, que significa estar pleno, cheio, como na palavra beautiful (cheio de beleza), o sufixo less opera por desprover o substantivo justamente de sua substância, gerando um adjetivo definido não pela posse ou plenitude, mas pela falta. Assim, o adjetivo ageless nega e me desapropria da minha idade.

Senti que ali, em um termo que à primeira vista poderia até parecer potente, estaria a mais recente atualização das representações sexistas de beleza feminina. Uma que autorizaria a presença de mulheres maduras no campo do desejo e das imagens, desde que sejam deslocadas para a nova categoria das “sem idade”, tornando-as uma exceção e mantendo o passar dos anos para uma mulher ainda como algo negativo e a ser sonegado.

É claro que implodir padrões e limites morais e culturais baseados na idade de uma pessoa faz todo sentido e é uma causa importante. Mas o ponto é: por que escolher para representar isso uma palavra que, no lugar de afirmar a idade, a apaga?

Pesquisei e descobri que a expressão ageless foi criada pela indústria de cosméticos para substituir a expressão anti-age (anti-envelhecimento, anti-idade) como promessa atualizada nos produtos de beleza que confere uma conotação menos de uma luta ou guerra contra as marcas do tempo, e sim de um processo que seria mais tranquilo e positivo. Fico pensando se trocar um esforço real (anti-age) por uma quimera (ageless) não seria algo ainda mais ardiloso e frustrante para nós mulheres.

 

fotografia de diferentes produtos "ageless"

 

Logo em seguida, a expressão ganha força na publicidade como algo ainda maior: ageless vira um “estilo de vida”. E vejo muitas mulheres aderindo rapidamente a essa hashtag.

na imagem, diferentes hashtags do instagram com a palavra "ageless"Se a celebrada e repetida expressão ageless, essa oferta (inédita até então na cultura ocidental para as mulheres) de poder envelhecer sendo um “case de sucesso” parece ser à primeira vista uma revolução anti-etarista, ela não me parece desafiar a cruel e histórica relação entre beleza e juventude que só existe para o sexo feminino. Ela não rompe as relações de poder entre homens e mulheres e entre jovens e velhos, apenas reforça que segue existindo algo muito errado com o fato de os anos passarem para nós. Se antes a maturidade em uma mulher era algo tão socialmente reprovável a ponto de ser deselegante perguntar sobre sua idade, levando muitas a mentir ou esconder sua data de nascimento, agora, com o advento do ageless, ganhamos autorização para comemorar nossos aniversários e revelar nossa idade sem tanto constrangimento desde que nossa aparência, modo de viver e energia possam ser identificados como “jovem”. Ou seja, desde que tenhamos um DNA compatível com a estética e padrão de beleza atuais, além de dinheiro, tempo e disposição para investir em uma boa dermatologista, cremes, esportes, viagens, academia etc.

Para mulheres, como percebeu Susan Sontag, envelhecer não é apenas um destino, algo que acontece por sermos humanos e que pode até gerar alguma apreensão, como é para os homens. Para nós, envelhecer é posto como um terreno doloroso de vulnerabilidade e vergonha. Há um duplo padrão para o envelhecimento masculino e feminino, que Sontag evidencia muito bem ao distinguir velhice (old age) – que é uma fase fisicamente difícil para homens e para mulheres -, de ficar mais velho ou envelhecer (grow old) – período longo que antecede a velhice e que é psicologicamente experimentado como um tormento ou uma provação apenas para as mulheres, por conta dos padrões e cobranças sociais que nos são impostos:

A velhice (old age) é uma provação genuína, uma que homens e mulheres sofrem de modo similar. Envelhecer (grow old) é principalmente uma provação da imaginação — uma doença moral, uma patologia social —, à qual é intrínseco que aflige mulheres bem mais do que homens. São particularmente as mulheres que experimentam envelhecer (tudo o que vem antes de que alguém esteja realmente velho) com tamanho desgosto e até vergonha. [1]

Ser mulher e envelhecer em nossa sociedade é uma questão política. Como diz bell hooks, fazendo uma distinção (que o feminismo por vezes não fez) entre os desejos femininos por beleza (que são totalmente legítimos) e as sensibilidades ainda patriarcais que informam toda a cadeia de produção desse mercado: “Não seremos livres até que as feministas retornem à indústria da beleza, retornem à moda e criem uma revolução contínua e sustentável. Não saberemos como amar o corpo e a nós mesmas.”

Enquanto isso, devemos seguir questionando e buscando imagens e palavras (sim, as palavras importam) psicologicamente saudáveis para viver e envelhecer bem, que desmontem as armadilhas que nos são continuamente impostas.

O que tenho aprendido com minha própria experiência e com mulheres de 50, 60 e 70 + que admiro é que vitalidade é um atributo de quem está e se sente vivo (e deve deixar de ser exclusivamente uma referência à juventude), que beleza é uma composição que se apresenta a vida toda e de muitas formas, e que inteligência é o fundamental.

Talvez ageful nos caia bem melhor do que ageless.

 

[1] Tradução livre minha para o texto original: “Old age is a genuine ordeal, one that men and women undergo in a similar way. Growing older is mainly an ordeal of the imagination – a moral disease, a social pathology – intrinsic to which is the fact that it afflicts women much more than men. It is particularly women who experience growing older (everything that comes before one is actually old) with such distaste and even shame.”

 

Referências:

 

hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2018.

SONTAG, Susan. The double standard of aging. In. The Saturday Review, p. 29-38, September 23, 1972. Disponível em: <www.unz.org/Pub/SaturdayRev-1972sep23-00029>. Acesso em: dez. 2020.

 

Liliane Leroux é professora e pesquisadora em Artes Visuais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), graduada em Sociologia pela UFRJ , atuando no campo da Sociologia da Arte, Doutora em Educação pela UERJ, com pós doutorado em Cultura e Comunicação (UERJ). Co-coordenadora do GT Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos na AIM (Portugal). Dirigiu o filme Armanda, sobre a educadora feminista Armanda Álvaro Alberto. Pesquisa representações da mulher madura no cinema e na moda, e autorrepresentação feminina no autorretrato fotográfico. Instagram: @nane.leroux
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