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Arrependimento materno me faz lembrar imediatamente daquela cena clássica de família: a mãe reclamando de estar cansada, gritando aos quatro cantos da casa que apenas será reconhecida por nós, filhas, no dia em que tivermos os nossos filhos. Mas, e se não quisermos ter filhos? Tal negativa faz elas rapidamente mudarem seus discursos, aclamando a maternidade como um lugar “cheio de bênçãos”, da qual nos arrependeremos de não viver. E se nos arrependermos ao vivê-la? Esta é a reflexão que quero trazer.

Primeiro de tudo: a experiência humana de uma mulher parece estar naturalmente traçada pela maternidade, ainda que em seu plano teórico. Diante disso, somos mais suscetíveis a ter que responder às pessoas quando seremos mães, e, talvez, em alguns espaços, teremos a sorte de relativizar essa escolha. Porém, assim que a mulher toma a decisão de ser mãe, concebe a criança, o bebê nasce e a experiência real acontece. A partir deste momento suas palavras parecem não ter permissão para atravessar as dores mais humanas, especialmente se elas colocam em dúvida a aura mística-divina materna.

Em uma breve observação na história da humanidade, vamos descobrir que as primeiras ideias sobre a maternidade como atividade exclusiva da mulher, por ser aquela que concebe os filhos, são recentes e surgiram com o filósofo Rousseau, no ano de 1762, após a publicação de sua obra “Emílio”. No livro, o autor apresenta a proposta do ser-mãe como a mulher que concebe, cria, acolhe, educa, tudo isso por habilidade própria e inerente.

Mais adiante, pela influência da Igreja Católica, surge a figura da Madona, a Maria mãe, e instala-se a sacralidade materna a toda mulher, cabendo-lhe acatar esta oportunidade para cumprir seu papel mais sublime na vida em sociedade. Anos depois, já no século XIX, nasce também a mãe como a rainha do lar, aquela com a intuição necessária para assumir a responsabilidade de criar seus filhos e única capaz de amá-los incondicionalmente.

No século XX, eventos históricos marcaram novas discussões sobre a maternidade e a feminilidade, alcançando espaços políticos e acadêmicos. A chegada da pílula anticoncepcional nos anos 1960 proporcionou e independência das mulheres em relação ao corpo em seus processos contraceptivos. Nasce então a mulher que questiona a maternidade como um lugar sagrado, de plenitude feminina. O movimento feminista, que se destaca neste tempo, volta-se aos direitos das mulheres, incluindo seus direitos reprodutivos, e à possibilidade de serem donas de si, livres para incluir ou não a maternidade em seus planejamentos de vida.

Elisabeth Badinter, autora neste cenário de discussão, apresenta estudos que desconstroem o instinto materno e sua característica absolutista ao gênero feminino. Segundo a autora, o instinto do amor materno universal é um mito, uma construção social, histórica e cultural que impede a percepção da pluralidade de experiências que as mulheres vivem na sua maternidade, em diferentes lugares e em diferentes épocas.

“Que vem a ser um instinto que se manifesta em certas mulheres e não em outras? […] Em vez de instinto, não seria melhor falar de uma fabulosa pressão social para que a mulher só possa se realizar na maternidade? […] Para todas essas mulheres, a maternidade, tal como é vivida há séculos, é apenas o lugar de alienação e da escravidão”, trecho do livro “O Mito do Amor Materno” de Elisabeth Badinter.

Ainda assim, essas discussões não conseguiram quebrar a força sagrada que ainda permeia a figura mãe. Diante disso, a mulher do século XXI encontra tanto a oportunidade de ter autonomia sobre suas decisões a respeito da maternidade, quanto a pressão social, os palpites, a carga de discursos comprometidos a ditar sobre o que é ser mulher-mãe.

Resumidamente, se desejar, esta mulher pode optar pela maternidade, pode optar pela não maternidade, mas, em ambas, haverá as “regras sociais” sobre tais escolhas. Se quiser ser mãe, receberá a conduta que a tornará a grande mãe, a mãe boa, a que se sacrifica e renuncia aos seus desejos e vontades e advoga seu filho como prioridade de vida. Se não quiser ser mãe,  será confrontada pela indignação e será lembrada do seu destino solitário e sem plenitude por não escolher este caminho.

Em uma terceira opção, e se a mulher aceitou a maternidade como uma escolha e ao vivê-la se arrependeu? Infelizmente, o discurso social normalizado, ainda que admita que ser mãe é difícil, cansativo, exige sacrifício, comprometimento, responsabilidade e entrega, acrescenta que tudo pode ser compensado pela própria maternidade. Caso não seja, cabe a mulher esforçar-se por vivê-la de uma maneira melhor ou, quem sabe, reavaliar seus valores e caráter, afinal, uma mãe arrependida talvez indique um sinal de que esta mulher seja uma mãe má, aquela não saberá cuidar de seus filhos, nem amá-los — muito menos protegê-los.

Sem um espaço para revelar suas sensações e consciência de arrependimento — dado o fato que tal linguagem emocional não tem permissão para estar conectada à função de maternar —  as mães arrependidas acabam convivendo com o silenciamento, o amortecimento de sua expressão emocional e a impossibilidade de serem ouvidas. São tiradas delas a relativização da experiência humana, tão presente em tantas áreas da vida: a profissão que se gosta ou não, o relacionamento que satisfaz ou não, o acontecimento que agrada ou desagrada.

Falar abertamente sobre o arrependimento materno é discutir sobre o peso da obrigatoriedade da escolha da maternidade, as expectativas comportamentais sobre a mulher, as imposições sobre o sentir e viver a maternidade, especialmente aquelas que se remetem a colocar a mulher no papel da pessoa que vive para servir seu núcleo familiar. Olhar para a mãe arrependida é enxergar a pessoa por trás do ser-mãe e entender que experiências diversas também estão presentes na vivência materna.

Além disso, discutir o tema do arrependimento pode dar às mulheres, que se veem como mães arrependidas, o poder sobre sua própria voz. Com o objetivo de que encontrem um caminho para liberar seus sentimentos, quer eles venham de forma constante ou pontualmente, de auxiliá-las a reconhecer a sua experiência para integrá-la a sua história.

Você sente que é uma mãe arrependida? Você acha que conhece uma mãe arrependida? Será que sua própria mãe é uma mãe arrependida que nunca se sentiu à vontade para expressar essa condição? Observe a sua volta e com certeza irá perceber a presença delas, as mães arrependidas. Você acabou de ler um texto de uma delas. Obrigada.

Editado por Bruna Rangel e revisado por Júlia Zacour.

 

Carla Santos Santiago Fontoura. Escritora de textos informativo e poemas, palestrante, tradutora, mãe feminista de Kabir. Luto pelas mulheres e as crianças e busco conectar informações relevantes a mudança de consciência e comportamento.
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