Analisar o crime de estupro significa invariavelmente desvendar certos mitos. É realmente surpreendente o grande desnível que existe entre o que são os fatos acerca do estupro e o que se construiu socialmente do que é ou não estupro, de quem é o estuprador e de quem é a vítima.

O que se fala é que o estupro é um crime terrível. Olhando atentamente a casos específicos, no entanto, vemos que estupros são justificados de diversas formas. Portanto, há uma contradição. Contudo, vamos partir do que temos por mais simples: o estupro é um crime.

E o que é um crime? É uma regra social, um desvio, conforme assinala Howard S. Becker. O criminoso é a pessoa que infringe essa regra socialmente imposta:

Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como “certas” e proibindo outras como “erradas”. Quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider[1].

Existem discordâncias do que é considerado errado, fazendo com que aquele que infringe a regra considere seus juízes outsiders, não a si mesmo. Por ser uma regra social, ela está sujeita a alterações dependendo de sua localização no tempo e no espaço. É o que vemos, por exemplo, com relação ao aborto, que é criminalizado em alguns países e outros não.

O caso do estupro, no entanto, é praticamente um consenso que se trata de um algo horrendo, por isso é até mesmo usado como forma de punição. Mesmo assim o crime de estupro passou por diversas transformações ao longo do tempo.  

Até poucos anos atrás era considerado estupro apenas o ato que tivesse penetração vaginal, deixando fora da tipificação, portanto, atos igualmente invasores, como a penetração pelo anus e o sexo oral, considerados atentado violento ao pudor. Somente a pouco tempo também que tais crimes passaram a ser considerados crimes contra a dignidade sexual, antes eram considerados crimes contra o costume:

No rastro do movimento feminista dos anos 1970 e 1980, com a Constituição Federal de 1988 a mulher passa a lograr um papel de igualdade nas funções, no âmbito familiar. Não obstante, até 2009 o estupro ainda era tipificado como um crime de ação privada contra os costumes. Nas palavras de Menicucci et al. (2005, p. 377), o que constituiria crime seria a “agressão à sociedade por intermédio do corpo feminino. É como se o homem (pai ou marido) fosse tocado em sua integridade moral pela violência sexual vivenciada pela mulher”[2].

Esses exemplos servem para nos mostrar como uma tipificação de um crime muda ao longo do tempo, muda a partir de mudanças na sociedade e, principalmente, para vermos como esse histórico influencia até hoje a percepção comum sobre o estupro. Como o direito também é um produto cultural, e, assim, o direito criminal e a análise do crime específico que é o estupro, não escapa às construções sociais acerca do tema. Tudo isso ajuda a formular o que chamamos de cultura do estupro.

Além de ser um crime, como visto, temos pelo menos dois sujeitos envolvidos na nossa análise da percepção social do estupro: o agressor e a vítima. Para falarmos mais sobre isso, iremos voltar um pouco ao estudo do Becker, que faz uma análise interessante das explicações sociais para o desvio.

A primeira delas consiste em considerar desviante “tudo que varia excessivamente com relação à média”[3]. É, portanto, uma concepção essencialmente estatística.

Assim formulada, a concepção estatística parece simplória, até trivial. No entanto, ela simplifica o problema pondo de lado muitas questões de valor que surgem usualmente em discussões sobre a natureza do desvio. Ao avaliar qualquer caso particular, basta-nos calcular a distância entre o comportamento envolvido e a média. Mas essa é uma solução simples demais. A procura com semelhante definição retorna com um resultado heterogêneo – pessoas excessivamente gordas ou magras, assassinas, ruivas, homossexuais e infratoras de regras de trânsito. A mistura contém pessoas comumente consideradas desviantes e outras que não infringiram absolutamente qualquer regra. A definição estatística de desvio, em suma, está longe demais da preocupação com a violação de regras que inspira o estudo científico dos outsiders.

Outra concepção bastante comum, principalmente envolvendo casos de estupro, é a que considera o desvio como “algo essencialmente patológico”[4]:

Essa concepção repousa, obviamente, numa analogia médica. Quando está funcionando de modo eficiente, sem experimentar nenhum desconforto, o organismo humano é considerado “saudável”. Quando não funciona com eficiência, há doença. Diz-se que o órgão ou função em desajuste é patológico. Há, é claro, pouca discordância quanto ao que constitui um estado saudável do organismo. Há menos concordância, porém, quando se usa a noção de patologia, de maneira análoga, para descrever tipos de comportamento vistos como desviantes. Porque as pessoas não concordam quanto ao que constitui comportamento saudável. É difícil encontrar uma definição que satisfaça mesmo um grupo tão seleto e limitado como o dos psiquiatras; é impossível encontrar uma definição que as pessoas aceitem em geral, tal como aceitam critérios de saúde para o organismo.Por vezes, as pessoas concebem a analogia de maneira mais estrita, porque pensam no desvio como produto de uma doença mental. O comportamento de um homossexual ou de um viciado em drogas é visto como sintoma de uma doença mental, tal como a difícil cicatrização dos machucados de um diabético é vista como um sintoma de sua doença. Mas a doença mental só se assemelha à doença física na metáfora[5].

Os critérios de avaliação do que é doença mental mudaram ao longo do tempo. A lista cresceu não com base em novas descobertas, mas a partir de critérios como “incapacidade” e “sofrimento”:

Assim, a princípio lentamente, coisas como histeria, hipocondria, neurose obsessivo-compulsiva e depressão foram adicionadas à categoria de doença. Depois, com o crescente zelo, médicos e especialmente psiquiatras passaram a chamar de “doença” (isto é, evidentemente, doença mental) absolutamente tudo em que podiam detectar qualquer sinal de mau funcionamento, com base em não importa que regra. Portanto, agorafobia é doença porque não se deveria ter medo de espaços abertos. A homossexualidade é doença porque a heterossexualidade é a norma social. Divórcio é doença porque indica o fracasso do casamento. Crime, arte, liderança política indesejada, participação em questões sociais ou abandono dessa participação – todas essas e muitas outras coisas foram consideradas sinais de doença mental[6].

Esse critério é bastante comum quando se analisa o imaginário social acerca do estuprador. No Brasil, há anualmente 527 mil tentativas ou casos de estupro consumado[7]. É um número absurdamente alto. No entanto, o senso comum de quem é a pessoa responsável por todos esses casos é: o homem, na grande parte das vezes negro, que fica vagando sozinho por becos e ruas desertas esperando uma mulher passar para ataca-la. É a própria imagem de um maníaco. De fato, muitas pessoas associam o estuprador a um doente, alguém que tem algum problema psicológico ou psicopatia. Haveria de ser uma população enorme de doentes mentais se realmente fossem responsáveis por 527 mil casos ao ano.

O grande problema dessa concepção patológica do desvio, além do que aponta Becker que impede-nos “de ver o próprio julgamento como parte decisiva do fenômeno”[8], é que ele se tira o problema do campo sociológico. Ou seja, não se trata de analisar o fato como um problema social e cultural, é uma patologia. Logo, qualquer análise sobre as causas de tais crimes é desde já descartada.

É prudente desde logo esclarecer que o estuprador não é um doente mental (em que pese possa também sê-lo). Ele é uma pessoa inserida numa cultura de dominação masculina, uma cultura que vê mulheres como propriedade de homens, uma cultura com hierarquia de gênero, uma cultura que utiliza o sexo como uma relação de poder e uma afirmação de virilidade masculina.

Quem é, enfim, o estuprador?

Na maioria esmagadora dos casos, é uma pessoa do sexo masculino. Em 20 a 40% dos casos, um homem embriagado[9]. No caso de agressões a crianças, cerca de 70% dos casos, os agressores são os próprios pais ou padrastos em 24,1% dos casos e em 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima:

O indivíduo desconhecido passa a configurar paulatinamente como principal autor do estupro à medida que a idade da vítima aumenta. Na fase adulta, este responde por 60,5% dos casos. No geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares[10].

Esses dados foram retirados de um estudo realizado pelo Ipea que analisa essas agressões utilizando dados da Saúde. Ele nos mostra, além do estuprados, dados da vítima, locais que ocorrem as agressões, até mesmo o dia da semana mais comum (surpreendentemente, segunda-feira). No entanto, além da análise de dados, a questão é mais complexa.

Becker finaliza a sua análise das definições do desvio, além da estatística e da patológica, com uma definição sociológica que é mais próxima de sua própria: desvio seria a falha em obedecer regras do grupo. A partir dessa definição, o autor passa a analisar outro ponto de extrema importância também à análise do crime de estupro, que é a relação entre desvio e as reações dos outros:

A concepção sociológica que acabo de discutir define o desvio como a infração de alguma regra geralmente aceita. Ela passa então a perguntar quem infringe regras e a procurar os fatores nas personalidades e situações de vida dessas pessoas, e que poderiam explicar as infrações. Isso pressupõe que aqueles que infringiram uma regra constituem uma categoria homogênea porque cometeram o mesmo ato desviante.Tal pressuposto parece-me ignorar o fato central acerca do desvio: ele é criado pela sociedade. Não digo isso no sentido em que é comumente compreendido, de que as causas do desvio estão localizadas na situação social do desviante ou em “fatores sociais” que incitam sua ação. Quero dizer, isto sim, que grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal[11].

O termo que merece destaque nessa passagem transcrita é: rótulo. Porque algumas pessoas são rotuladas como desviantes e outras não? Becker percebe que um ato é ou não desviante dependendo de como outras pessoas reagem a ele[12]. Para isso, dá um exemplo de um caso de um relacionamento sexual ocorrido entre um jovem e sua prima em uma comunidade nas ilhas Trobriand. Casos assim não eram raros de acontecer e se o caso fosse levado adiante “em segredo e com certo grau de decoro, e se ninguém em particular provocar tumulto, a ‘opinião publica’ vai mexericar, mas não exigirá nenhuma punição severa”[13]. No entanto, se houver um escândalo, como na história narrada houve, “todos se voltarão contra o casal culpado e, por força de ostracismo ou insultos, um ou outro poderá ser levado ao suicídio”[14].

Isso nos mostra que nem sempre o fato de a pessoa ter infringido uma regra “significa que outros reagirão como se isso tivesse acontecido”[15]. E, principalmente, “o grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele. Regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas que a outras”[16].

A sociedade não seleciona igualitariamente quem é receberá o rótulo de estuprador. Quando se fala em estupro, não é somente o agressor que recebe um rótulo, mas também a vítima. No caso das mulheres, são divididas moralmente entre “honestas”, as que podem ser vítimas, e as “desonestas”, que podem ser abandonadas sem maiores preocupações.

O estupro era visto como um crime contra a honra do homem, legítimo proprietário da mulher, do que uma violência cometida contra a mulher. O crime de estupro estava disposto no Código Penal de 1890 sob o título “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje ao poder público”.

Por isso, o marido não poderia ser considerado um criminoso, mesmo que estuprasse a esposa. Um homem que estuprasse uma mulher casada (e dependendo com quem estava casada) tinha seu órgão sexual decepado, mas se fizesse o mesmo com uma prostituta, uma escrava, uma mulher pobre, não sofria maiores consequências.                                                                               

Com efeito, no Código Civil de 1916, o homem era o chefe da família e a mulher era considerada “relativamente incapaz”. Até os anos 1970, a tese de “legítima defesa da honra” era admitida para inocentar quem assassinava seu cônjuge, como ocorreu no famoso caso Doca Street, em 1979, que foi objeto de forte denúncia pelo movimento feminista. Nesse mesmo período, debatia-se no meio jurídico se o marido poderia ser sujeito ativo do crime de estupro contra sua esposa, uma vez que era dever dos cônjuges manter relações sexuais[17].

Lenio Luiz Streck faz uma observação espantosa sobre o tema:

 Há pouco tempo, escrevi um artigo sobre isso – Direito Penal e paradigma dogmático: um (re)pensar crítico – para a revista da Universidade de Santa Cruz do Sul e, ao fazer algumas investigações, descobri coisas fantásticas. Em comentário ao art. 213 do Código Penal, que trata do estupro, consta o seguinte entendimento de Damásio de Jesus (CP Anotado, Ed. Saraiva, 1993, p. 605): “Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações como e onde este quiser. Não perde o direito de dispor do seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato, desde que tal negativa não se revista de caráter mesquinho. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal, e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa”. Assim, a contrario sensu, pode-se entender que, na opinião do renomado jurista, se não existir a justa causa ou se a negativa da esposa em manter a relação sexual for de caráter mesquinho, o marido pode força-la a tal, o que significa estupra-la (…)[18].

O que vemos na sociedade atual quando se analisa os discursos que envolvem agressor e vítima é a própria herança de todo esse pensamento patriarcal. O que existe na reação dos outros ao estupro é um julgamento moral não do crime mas dos sujeitos envolvidos no processo. E isso também é explicado pela análise histórica do Direito.

Como no passado o estupro era um crime contra a honra, o que se buscava defender em acusações de estupro era exatamente isso: a honra. Por isso era bastante comum um ataque a vítima, buscando desonra-la. E o que viria a ser desonra, quando se pensa, principalmente, no século XIX-XX? A moça que andava só, frequentava bailes, não vestia roupas adequadas, não fosse mais virgem. Exatamente valores morais que são utilizados, hoje, para depreciar vítimas de estupro. Do mesmo modo, a defesa da honra foi amplamente utilizada para desqualificar a palavra da vítima. Era uma estratégia, inclusive, de defesa de advogados. Isso é repetido, também, até hoje[19].

Assim, vemos um grande paradoxo ser desfeito. Como poderia haver uma cultura do estupro em uma sociedade que criminaliza o estupro? De fato, o estupro é criminalizado, mas as reações sociais são hipócritas. Dependendo do status do estuprador e da vítima, pede-se a mais alta condenação ou justifica-se o abuso de alguma forma.

 

Referências Bibliográficas:

(IPEA, 2014). IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Nota técnica. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf>

BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

MORELLI, Liana Machado. A contribuição do discurso jurídico na formação dos papeis de gênero na Primeira República. In: Revista Gênero e Direito (1) 2014. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/article/view/18262/10567>.

STRECK, Lênio Luiz. Criminologia e Feminismo. In: Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.

[1] BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. Pg. 15.

[2] IPEA. Pg. 3.

[3] BECKER. Pg. 18.

[4] BECKER. Pg. 18.

[5] BECKER. Pg. 18-19.

[6] SZASZ apud BECKER. Pg 19-30.

[7] IPEA. Pg. 6.

[8] BECKER. Pg. 20.

[9] IPEA. Pg. 10.

[10] IPEA. Pg. 9.

[11] BECKER. Pg. 21-22.

[12] BECKER. Pg. 24.

[13] MALINOWSKI apud BECKER. Pg. 24.

[14] MALINOWSKI apud BECKER. Pg. 24.

[15] BECKER. Pg. 24.

[16] BECKER. Pg 25.

[17] IPEA. Pg. 3.

[18] STRECK, Luiz Lenio. PG. 87.

[19] MORELLI, Liana Machado. A contribuição do discurso jurídico na formação dos papeis de gênero na Primeira República. In: Revista Gênero e Direito (1) 2014. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/article/view/18262/10567

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