“Da maneira como fazemos estão protegidas, podem realizar seus destinos biológicos em paz. Com pleno apoio e encorajamento.” (ATWOOD, 2017, p. 192).

 

O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale no título original) foi escrito por Margaret Atwood na década de 1980 mas a discussão do livro segue atual. Quando as mulheres vestidas com capas vermelhas (aias) caminham ao som de um discurso religioso que reafirma um destino biológico e social do qual não podem escapar, fica claro que a série coloca em jogo o controle dos corpos femininos baseados na exploração reprodutiva de mulheres.

A história acontece em um futuro distópico, na república de Gilead, local em que é instaurado um estado teocrático e totalitário, liderado por fundamentalistas religiosos. Os problemas climáticos e a poluição tornaram a maioria das mulheres inférteis e afetaram as taxas de natalidade, que caíram drasticamente. Ao mesmo tempo, grupos fundamentalistas religiosos passam a ter cada vez mais influencia no governo dos Estados Unidos, até que tomam o poder e passam a controlar essa sociedade.

A sociedade é liderada pelos chamados comandantes da nação, que equivalem a governadores e ministros, e suas esposas e parentes, que ocupam a posição de privilégio nessa hierarquia. Os direitos das mulheres são cortados, inclusive o direito de trabalhar, e tudo que pertence às mulheres é transferido para o parente homem mais próximo. As mulheres são retiradas de suas famílias e passam a servir o Estado, divididas entre férteis e inférteis. Nessa divisão, as mulheres inférteis ocupam a função de domésticas e as férteis são enviadas aos Centros Vermelhos para se tornarem aias das famílias dos comandantes. Na Gilead hierarquicamente organizada, cabe às mulheres ocupar um lugar de subalternidade que é designado de acordo com a sua capacidade reprodutiva.

“Somos para fins de procriação: não somos concubinas, garotas gueixas, cortesãs. […] Somos úteros de duas pernas, apenas isso: receptáculos sagrados, cálices ambulantes.” (ATWOOD, 2017, p. 165).

As aias têm como função gestar os/as filhos/as das famílias dos comandantes, concebidos de relações sexuais não consentidas, e cumprir seu papel reprodutivo para garantir a continuidade da população. Para “ensiná-las” sobre como cumprir esse papel os Centros Vermelhos se utilizam de passagens bíblicas e o útero das mulheres e sua capacidade reprodutiva é, portanto, tratado como propriedade estatal. Frases como “sob os olhos Dele” e “bendito seja o fruto” viram saudação e fazem parte das poucas interações permitidas para as mulheres em Gilead.

 

Mulheres vestidas de aia como no livro e série o conto de aia, com uma capa vermelha e acessório branco no cabelo, em frente ao STF.

Reprodução Instagram Nem Presa Nem Morta/ Foto por Heloisa Adegas

 

Vamos trazer essa discussão pro Brasil de 2020?

 

Semana passada circulou a notícia de uma menina de 10 anos, que foi abusada sexualmente por um familiar, e acabou ficando grávida. Ao contrário do que prevê a nossa legislação sobre o direito ao aborto legal, o caso foi colocado em análise e gerou bastante notícias nas últimas duas semanas, em que pessoas lançavam suas opiniões sobre os encaminhamentos do caso.

Foi necessária a judicialização do caso (em desconformidade com o Código Penal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente e à Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes), a decisão judicial, ir para outro Estado e a intervenção dos movimentos feministas no local para impedir que fundamentalistas religiosos entrassem no hospital que realizou o procedimento e impedissem a menina de interromper a gravidez.

Acontecimentos como esse nos transportam para o mundo distópico que nos choca em O conto da aia, mas o caso da menina, infelizmente, não é um caso isolado. Em minha dissertação de mestrado analisei processos de pedidos para aborto legal e mais de 50% deles não precisariam ser ajuizados pois estão previsto em lei como hipóteses em que o aborto é permitido. Conclui, nessa pesquisa, que o Estado acaba dificultando o acesso a esse direito e exercendo uma forma de controle sobre os corpos das mulheres, negando a elas o direito de interromper a gravidez mesmo nas hipóteses permitidas por lei,

Pense comigo: não estamos em Gilead, mas obrigar uma menina de 10 anos a ter uma gestação de risco e oriunda de um abuso sexual não parece a mesma imposição feita às aias no livro/série?

Da mesma forma que o caso nos faz pensar o direito e traz à tona o debate sobre aborto legal e descriminalização do aborto, indico a série para pensarmos o tratamento dado às mulheres no ordenamento jurídico na prática. A legislação prevê um direito, mas conseguimos acessá-lo de forma efetiva? A lei permite interromper a gestação em casos com o da menina, então por que a menina é colocada sob julgamento moral e judicial? Cabe ao Estado esse tipo de decisão sobre as mulheres e seus corpos? Me parece que o controle dos corpos pelo Estado em Gilead não é tão distópico ou impensável se voltarmos os olhos para a realidade que vivemos hoje no Brasil.

 

Vanessa Ramos da Silva. Advogada e professora universitária, mestranda em Sociologia pela UFRGS, e pós-graduada em Filosofia e Direitos Humanos. Sou pesquisadora na área de estudos de gênero e sistema de justiça e, por isso, gosto de fomentar o debate sobre questões de gênero e direito em seus mais variados aspectos e faces.

 

capa do livro o conto da aia de margareth atwoodCapa comum: 368 páginas
Editora: Rocco; Edição: 1ª (7 de junho de 2017)
Idioma: Português
ISBN-10: 8532520669
ISBN-13: 978-8532520661
Dimensões do produto: 21 x 14 x 2 cm
Peso de envio: 363 g

 

 

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