Quais são os desafios para se reconhecer e compreender a bissexualidade e outras identidades não-binárias? Porque este campo de estudo é importante? Robyn irá abordar estas questões e delinear alguns desafios e oportunidades que nós enfrentamos no caminho.

Muito obrigada aos organizadores desta conferência que trabalharam durante muito e por muito tempo para que possamos nos reunir hoje para pensar pensamentos profundos e desfrutar da companhia uns dos dos outros. Estou muito entusiasmada por estar aqui com todos vocês. Que oportunidade!

Estou aqui para falar sobre a razão pela qual precisamos de ‘ficar bi’*. Como vocês que estão familiarizados com jogo de palavras em língua inglesa já sabem, o título do meu livro mais recente é “Getting Bi”, e joga com os múltiplos significados desta expressão: “Getting by” como em “estar OK” ou “dar-se bem”; “getting bi”, o que pode significar tornar-se bissexual; e “getting bi”, significando compreender a bissexualidade. Esta palestra centra-se sobre este terceiro significado: compreensão. Falarei de desafios para reconhecer e compreender a bissexualidade e outras identidades não-binárias.

Como muitos de vocês sabe, tenho tentado educar as pessoas sobre a bissexualidade durante quase três décadas. Tenho observado – com grande entusiasmo – o corpo crescente de literatura e de investigação sobre este assunto, algumas delas criadas e por pessoas que estão aqui mesmo nesta sala.

Embora eu seja escritora e autora, vejo-me principalmente como uma educadora, confrontada com o desafio de explicar a outras pessoas o que é a bissexualidade. E, claro, como educadora, tento pegar questões complexas e apresentá-las de forma clara e acessível.

Eis uma estratégia que achei eficaz: Muitas vezes começo os meus programas dando a volta à sala e convidando os participantes a dizer uma coisa que eles ouviram falar de bissexuais. Tenho o cuidado de fazer uma distinção entre o que eles já ouviram e no que podem realmente acreditar. Este exercício inevitavelmente produz uma lista que é na sua maioria negativa e que inclui memes tais como:

  • Todos bissexuais são realmente lésbicas ou homens gays que ainda não saíram do armário.
  • Todos bissexuais são realmente heterossexuais que estão brincando ou fazendo experiências com a homossexualidade, basicamente turistas em Gaytrópolis.
  • Não existe isso de bissexualidade.
  • Na verdade todos são bissexuais.
  • Os “verdadeiros bissexuais” são extremamente raros.
  • Todos bissexuais são promíscuos.
  • Bissexuais são incapazes de monogamia.
  • Bissexuais não são feitos para relacionamentos.
  • Bissexuais irão te deixar por outra pessoa.
  • Bissexuais, por definição, têm de ter tanto um namorado como uma namorada.
  • Bissexuais precisam fazer sexo. Muito sexo. A toda a hora.

Você já deve ter ouvido tudo isto, e muito mais.

Depois falo de três coisas que acredito que contribuem para estes estereótipos: A primeira é o fato de que os bissexuais raramente são vistos. Uma mulher com um parceiro masculino é assumida por outros como sendo heterossexual. Uma mulher com uma parceira mulher é lida como lésbica. Uma mulher sozinha será provavelmente vista como heterossexual, a nossa suposição de padrão cultural, a menos que se encontre num local ‘lésbico’, caso em que ela será lida como lésbica.

Que tipo de comportamento teria eu, como bissexual, de adotar para outras pessoas para me verem como bissexual? Eu poderia entrar na sala com um homem e uma mulher, uma em cada braço, a fazer demonstrações públicas de afeto com cada um de forma que torne óbvio que somos parceiros sexuais. Ou eu poderia ser conhecido por ter múltiplos parceiros, incluindo pelo menos um homem e uma mulher. Ou eu poderia deixar alguém por outra pessoa de sexo diferente do parceiro que eu tinha (Curiosamente, neste cenário, muitas pessoas ainda poderão não me ler como bissexual. Pelo contrário, podem interpretar-me como tendo finalmente ‘saído do armário’ ou que decidi ‘que realmente sou hétero’).

Se pensarmos bem, estes exemplos espelham os estereótipos mais comuns da bissexualidade. E isso não é uma coincidência. Estes são os poucos momentos quando os bissexuais se tornam visíveis, e por causa disso, muitas pessoas equacionam bissexuais com promiscuidade, traição, relações desestabilizadoras, desconfiança, tesão e hipersexualidade. Os bissexuais que atualmente não se envolvem em um desses comportamentos são vistos como heterossexuais (“bem-comportados”), lésbicas ou gays.

É verdade que alguns bissexuais se comportam de forma consistente com alguns destes estereótipos? É claro que é verdade. Os bissexuais representam uma gama completa de comportamento de assexual a supersexual. Alguns de nós são monogâmicos, outros de nós são poliamorosos, e alguns de nós são celibatários. Como as pessoas em qualquer grupo de identidade, juntos englobamos uma vasta gama de comportamentos.

Os bissexuais são como qualquer outra pessoa. E com isso não quero dizer que “ó, somos normais”. Eu quero dizer que – tal como as pessoas de todos os outros grupos de identidade – nós cobrimos todo o espectro de comportamentos. Mas é apenas para bissexuais – e, sem dúvida, também para os homossexuais – que a nossa identidade é vista por causar promiscuidade, desonestidade ou a fratura de relações. No entanto, a verdade é que a nossa orientação sexual não causa ou prediz o nosso comportamento.

Segundo, parte do desconforto em torno da bissexualidade reside no fato de que é uma SEX-ualidade. Os Estados Unidos e muitos outros países tem culturas erotofóbicas simultaneamente obcecadas e repelidas pela sexualidade. Sexo é utilizado para vender quase tudo, tudo é sexualizado, e no entanto o assunto da sexualidade evoca um profundo desconforto. Temos uma relação perversa com sexualidade e bissexuais juntamente com lésbicas e homens gays são vítimas disso. As nossas vidas são sexualizadas. As pessoas heterossexuais são vistas como tendo vidas. Lésbicas, gays e bissexuais são vistos como tendo um estilo de vida. As pessoas heterossexuais são vistas fazendo famílias. As pessoas lésbicas, gays e bissexuais são vistas fazendo sexo.

E um terceiro desafio é que amamos os nossos binários. Como é que a maioria das pessoas constrói a orientação sexual? Gay ou heterossexual: duas caixas distintas, com um vazio no meio. Uma destas caixas é considerada muito maior, e muito mais socialmente aceitável, mas ambas são entendidas como tendo limites claros e o espaço entre as caixas é considerado inexistente, ou pelo menos instável. Assumem que qualquer pessoa fora dos limites destas duas caixas está temporariamente perdido, em trânsito ou confuso.

Aqui deixo claro que esta construção não se trata apenas de orientação sexual. Fazemos isto com muitas categorias: com o gênero, com o sexo, com a política e com tantas outras categorias, algumas culturalmente específicas. Além disso, utilizamos uma linguagem que reforça e, de fato, exagera as diferenças. Pense no sexo, por exemplo. Considere o termo: o sexo oposto. A palavra oposto enfatiza e exagera a diferença. Curiosamente, nós até colocamos homens e mulheres em planetas diferentes. Considere: “Os homens são de Marte; as mulheres são de Vénus”. Aqui, o vazio entre as categorias é real. Eu comparo binários a ímãs poderosos, afastando a nossa mente de pensamento complexo e cheios de nuances e para um pensamento demasiado simplista. Eu enfatizo que os binários têm uma atração contínua e devem ser implacavelmente resistidos. Nós estamos nadando contra uma corrente. E por esta razão os desafios que os bissexuais enfrentam serão contínuos. Não completaremos o nosso trabalho de forma mágica. E nós temos muito trabalho a fazer.

Precisamos de criar novas pesquisas sobre a identidade bissexual e sobre bifobia. Precisamos de criar estudos longitudinais de identidade das nossas vidas e identidade ao longo do tempo. Precisamos de estudos sobre a correlação – ou falta dela – entre identidade comportamento. Precisamos de estudos sobre saúde bissexual. Bissexuais são realmente menos saudáveis do que os heterossexuais, lésbicas e gays, e, em caso afirmativo, porquê? E o que pode ser feito para melhorar a saúde bissexual? E nós precisamos responder questões urgentes e importantes, tais como “São todos bissexuais homens realmente programadores de computadores, ou apenas a maioria deles?”… (Este último foi uma piada).

Precisamos de criticar, reinterpretar e expandir pesquisas existentes. Precisamos trabalhar com outros pesquisadores nas fases de concepção de seus estudos, para que suas ligações a respondentes e a linguagem da pesquisa sejam claras e inclusivas à bissexuais desde o início – se for essa a sua intenção. (Quantos de vocês alguma vez contatou um pesquisador que fez uma chamada para “lésbicas e homens homossexuais’, perguntaram se eram procurados como respondentes indivíduos identificados como bissexuais, e responderam “ora, sim”). Precisamos ajudar os pesquisadores que são inclusivos a levar a palavra às nossas comunidades bi para que eles consigam amostras suficientemente grandes para assegurar que os nossos dados não sejam omitidos dos resultados devido ao tamanho insuficiente da amostra.

Precisamos de levar as nossas pesquisas e as nossas críticas ao maior número possível de audiência. Considere a velha expressão: “Se uma árvore cai numa floresta e ninguém está por perto para o ouvir, será que faz um som?” Temos também que descobrir formas criativas e eficazes de assegurar que outras pessoas – tanto dentro da comunidade científica e também o público em geral – conheça o importante trabalho que estamos fazendo.

Precisamos fazer ouvir as nossas vozes e as nossas histórias. Aqui, estou a me referindo tanto às narrativas autográficas (contando as histórias das nossas vidas), como à obtenção as nossas vidas representadas nos meios de comunicação – em peças, em filmes, na ficção, na televisão, etc.

Precisamos de rever, reinterpretar, lembrar e reestruturar. Temos de convencer outros pesquisadores a utilizar uma linguagem que inclua a  bissexualidade e outras identidades que se situam entre – ou fora de – Kinsey 0 e Kinsey 6. Temos de desafiar a falsa noção – que tanto se esconde da nossa cultura suposições – que existem categorias limpas e arrumadas. Temos de desafiar todas os falsos binários, incluindo os binários de orientação sexual e de gênero. Temos de desafiar a falsa noção de que os únicos bissexuais que existem são os que outras pessoas veem como bissexuais. Devemos recordar aos outros as múltiplas por vezes contraditórias definições da palavra bissexual (autoidentidade, identidade atribuída, comportamento, história, fantasias, etc.).

Em um nível, o que somos chamados a fazer é muito simples. Num outro nível, não podia ser mais desafiante, mais complexo.

Mas é importante que façamos este trabalho. Temos de desafiar os binários, abraçar a complexidade e brilhar a luz em todo o espectro.

Pessoalmente, estou empenhada em continuar a fazer este trabalho, de novo e de novo, desafiando os binários pelo tempo que for preciso, com toda a paciência que eu puder reunião. Temos de fazer este trabalho porque é importante. Um colega ativista dos E.U.A. chamado Raven Kaldera disse: “Cada vez que você traça uma linha ela corta a carne de alguém”.

O lado negativo desta dinâmica é que cada vez que desafiamos os binários de qualquer tipo, sempre que desafiamos a bifobia, sempre que insistimos que as pessoas usam linguagem e imagens inclusivas, cada vez que damos espaço para complexidade estamos empenhados num ato de cura, um ato positivo e de afirmação.

Estamos expandindo a nossa visão,

Estamos colocando mais oxigénio na sala,

Estamos criando mais espaço para que outros sejam complexos e completos.

Estamos afirmando a diversidade, afirmando as nossas experiências complexas e únicas; estamos afirmando a nós mesmos; estamos permitindo que sejamos inteiros.

Obrigada.

 

 

Robyn Ochs é editora da antologia de 42 países “Getting Bi: Voices of Bisexuals Around the World” e da Bi Women Newslwtter. Ela tem sido uma educadora nesta área há 25 anos, e tem ministrado vários cursos universitários sobre a identidade bissexual e apresentada em mais de 400 faculdades, universidades e conferências em vários países.

 

OCHS, Robyn. (2011). Why We Need to “Get Bi.”  In: Journal of Bisexuality, 11(2-3), 171–175. doi:10.1080/15299716.2011.571983. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/15299716.2011.571983?journalCode=wjbi20> Acesso em 23.09.2020. Tradução por Bruna Rangel.