São tempos difíceis de isolamento social, não há como negar. Se tivesse nos contado que 2020 começaria com o mundo sofrendo uma pandemia de coronavírus, muitos não acreditariam. Ainda é inacreditável, mas, apesar de ser um momento de travessia – porquê sim, iremos passar por ele -, falar sobre saúde mental diante desse contexto se faz muito necessário.

O isolamento social ainda é uma realidade em muitos países. E bem sabemos que a sensação interna de incerteza faz parecer que ainda estamos um tanto quanto distantes de continuar a vida em outros formatos. Por ora, o que nos cabe é acolher e aprender a lidar com o que vem emergindo dessa situação, e mesmo se tratando de algo extremamente denso, delicado e que transpassa para outras problemáticas políticas e sociais, nos propomos a fazer desse espaço um lugar de escuta e construção coletiva, visando ampliar possibilidades de uma vida que seja possível de ser vivida aqui e agora.

A grande pergunta que não quer calar é: como atravessar ao isolamento social e cuidar da sua saúde mental? Bem, não podemos responder objetivamente essa questão. Seria extremamente pretensioso se fizéssemos isso, além de ser impossível fazê-lo sozinha.

Falar de saúde mental é falar de subjetividade, singularidade, é considerar a história de vida, as condições econômicas, a cultura, o território e tudo que esteja relacionado à existência do sujeito. Estamos sendo impactados pelo isolamento de maneiras diferentes, não estamos “todos no mesmo barco”, pois ocupamos contextos sociais diferentes e isso precisa ser compreendido quando nos propomos a falar sobre o tema.

A saúde mental por muito tempo foi (e por vezes ainda é) caracterizada como um nível de qualidade de vida, de estado cognitivo e emocional ou ainda para definir ausência de doenças, quase que um processo fechado. Porém, penso em saúde mental numa visão mais ampla, de estado/formas de existir. Pensamos um movimento equilibrado entre às necessidades e anseios internos e às exigências e ações que ocorrem em sociedade. Quase que um administrar de emoções dentro de uma gama de possibilidades.

E como então pensar em saúde mental ~ e toda sua fluidez~ em tempos de isolamento?

Bem, precisamos nos lembrar de um dos movimentos mais relevantes histórico-político, no contexto da saúde mental: a Luta Antimanicomial.

Para falar de isolamento, é preciso fazer um rápido resgate ao viés da Luta Antimanicomial, que foi/é um movimento que luta pelos direitos das pessoas com sofrimento mental, que até meados da Reforma Psiquiátrica nos 70, eram mantidas presas em conventos, hospitais e manicômios com discurso de cuidado. Desde aquela época uma boa galera já passou a entender que privar as pessoas de liberdade poderia ao invés de tratar, manter e ainda provocar sofrimento mental.

Olhando agora para o atual momento, nos damos conta que estamos atravessando uma situação muito particular, mas que nos remete ao conceito de “confinamento” dito anteriormente. Apesar de sabermos de sua importância como uma forma de cuidarmos de nós mesmos e do outro, estar nesta situação é uma experiência desagradável pois ela reflete uma ruptura diante da uma vida que estava sendo vivida de maneira adaptada (ou não) mas que precisou sofrer drásticas mudanças.

Chegamos então ao isolamento social (voluntário) como medida de enfrentamento a pandemia da covid-19. Além de Isolamento, ainda fomos sucumbidos a lidar com crise econômica, desemprego ou possibilidade de desemprego e a própria ansiedade em relação à contaminação com a doença. O que destaco como demanda principal emergindo desse processo de isolamento é a necessidade de estar vinculados a nossa própria vida de maneira integral. A gente já vivia a nossa vida, porém com vários escapes, considerando relações interpessoais, lugares, viagens, trabalho, consumo e outros. Compreendemos que cada pessoa ou grupo, reagem e sentem o isolamento de maneiras completamente distintas. Os aspectos vulneráveis que antes existiam e faziam barulhos no nosso dia-a-dia, agora, podem soar ainda mais alto.

Nos vemos nesse momento na necessidade de coexistir em nossos próprios lares integralmente, ou ainda, nos relacionarmos com nossas famílias (consanguíneas ou não) de uma forma diferente. Não raro escutamos: “só encontrava com pessoal que mora comigo no final de semana”, “meu quarto só serve para dormir”. Pois bem, com todas essas mudanças o que muda internamente?

Em nosso ponto de vista, acreditamos que estamos com uma lente de contato ampliada para todas as sensações, demandas e sentimentos nesse momento. Aquele canto descascando na parece que antes só percebíamos quando ficava muito naquele ambiente, agora pode passar a incomodar. Aquele hábito do nosso companheiro ou companheira que antes era até engraçado por ser diferente, pode ser um gatilho (mil adendos com essa palavra, que talvez tenhamos banalizado).

Diante disso, convidamos a acolher o óbvio: estamos vivemos tempos únicos. Até certo ponto, é esperado sentir-se mal, ansioso, com raiva, insatisfeito ou triste diante de tantos desafios que aparecem na nossa frente. E por isso, gostaríamos de compartilhar atos ou condutas que podem auxiliar nesse processo de sobrevivência e adaptação.

O que nos é solicitado: considerar, acolher e explorar possibilidades de ajustes criativos. Então, a seguir reunimos alguns pontos que acreditamos ser importantes para esse movimento continuar acontecendo daí. O convite é à reflexão, vem com a gente.

ME SINTO ANSIOSO:

Consideramos muito importante pensar em sintomas, sensações e características como algo disparado por alguma situação. Estamos “acostumados” a terceirizar sensações. A ansiedade pode ser um indicador de um transtorno, mas antes disso ela é uma sensação vivenciada por nós quando sentimos expectativa de algo ou ainda medo de algo. Para nós, remete sobre o futuro (incerto, eu sei). Geralmente colocamos a ansiedade como algo que fere e machuca, por que não entendê-la? Bem como todas às outras “sensações” que podem nos acometer, como um humor deprimido, falta de ânimo para executar as mesmas atividades de sempre.

POSSO ME PERCEBER:

Pensamos então sobre a possibilidade de nos escutarmos, nos sentirmos. O exercício da respiração pode ser uma ação de redução de danos. Quando respiramos e sentimos esse processo, de alguma forma conseguimos nos conectar melhor com o momento presente e com a realidade que ele se apresenta neste momento, para que a partir daí possamos pensar em como canalizar nossas necessidades.

PRECISO EXPRESSAR:

Outro ponto interessante é olhar (e sentir, sempre) o ambiente a nossa volta. Será que ele nos representa? Será que cabemos nele? Se não, porquê? Pensando sistemicamente, somos seres humanos naturalmente relacionais e por vezes optamos ou acabamos por não expressar às sensações que nos permeiam. Falar é tornar algo real. Entendemos e gostaríamos de compartilhar: aquilo que não falou não existe, ao menos não no ambiente em que existimos. Se pensamos em algo, deduzimos algo ou até desejamos algo e não expressamos, isso é algo real apenas no nosso processo interno. Nesse momento de isolamento e de lupa de aumento para os sentimentos, também pode ser uma oportunidade para construirmos formas de expressão, e certo e errado é uma questão de perspectiva, ok?

MEU CORPO ESTÁ FALANDO:

A forma como nos conectamos com nosso corpo (pensando na respiração), mas também na forma como o julgamos e o padronizamos. A vida é fluida, lotada de compensações e equilíbrios, permita-se sentir os prazeres que lhe estão à disposição neste momento. Ouvir o que esse corpo está falando e proporcionar, de maneira viável, o que ele precisa aqui agora, é vital. Seja fazendo uns alongamentos ou se movimentando como ele está sinalizando que precisa, uma refeição consciente ou até mesmo uma mudança na logística dos móveis da casa, permitindo esse corpo ocupar o espaço de maneira mais aconchegante e fluida.

COMO/O QUÊ/QUANTO ESTOU CONSUMINDO:

Além disso tudo, é curioso falarmos do isolar, diante de um modelo de mundo que nos instiga mantermos conectados o tempo todo. Por um lado, essa conexão é potente e pode ser válvula que alivia a tensão; uma chamada vídeo com a família e amigos, uma festa online para desopilar a mente, uma volta aleatória nas redes sociais interagindo com assuntos de seu interesse, enfim, não é somente sobre “o que consumir”, mas também “como e o quanto estou consumindo”.

Existe uma expressão chamada “fadiga de zoom” (“Zoom fatigue”, em inglês), que faz relação com o cansaço causado pelo excesso de videochamadas, em referência à plataforma que ganhou muito espaço (e dinheiro) durante esse período de isolamento social. Segundo o professor Gianpiero Petriglieri, associado da francesa Insead, para o site infomoney

“estar em uma videochamada requer mais foco do que um bate-papo cara a cara: é preciso trabalhar mais para processar pistas não verbais, como expressões faciais, tom de voz e linguagem corporal e prestar mais atenção a isso consome muita energia. A videochamada é o lembrete diário de que perdemos contato com as pessoas temporariamente. A angústia surge toda vez que vemos alguém online, como um colega do trabalho ou um amigo, e lembramos que deveríamos estar juntos no escritório ou em um bar. ”

O convite é para que percebamos como e o quanto nos afeta aquilo que consumimos, especialmente agora, na internet. Tem excesso de informação? Tem conteúdo que quando acesso percebo fadiga, estresse ou irritabilidade? A frequência da exposição faz me sentir como? Talvez seja importante reconsiderar e passar pelo filtro, pelo bem da sua saúde mental.

Segundo Marissa Shuffler, professora associada da Universidade Clemson, para o site Infomoney, acredita que um fator considerável para a fadiga e estresse, é a sensação constante que as pessoas têm de estarem sendo vigiadas por estarem fisicamente diante das câmeras.

“Quando você está em uma videoconferência, sabe que todo mundo está olhando para você. É como se estivesse em um palco, então surge a pressão social e a sensação de que precisa se apresentar. Mas performar o tempo todo é muito estressante.”

Para além das pontuações feitas, o cenário atual tem um peso considerável: o isolamento, o home office e a mudança de rotina também alimentam essa fadiga e irritabilidade.

Por fim, como o prazo de isolamento ainda é incerto, fique atento aos seus sinais e sintomas. O Conselho Federal de Psicologia flexibilizou as regras para autorização de atendimentos por meio de tecnologias de informação e comunicação nos meses que perdurarem a pandemia, a fim de facilitar o acesso da população aos serviços psicológicos durante esse momento. Existem profissionais em todo o mundo que estão se colocando à disposição para tirar dúvidas e amenizar angústias, além de grupos online de acolhimento e escuta que podem ser uteis para esse período de atravessamento.

Que possamos encontrar sentido e significado no modo de fazer essa travessia, de um jeito singular diante do que for possível.

 

Rayana Rodrigues Lira (CRP 023/950) possui formação em psicologia pelo Centro Universitário Luterano de Palmas, especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial e Atendimento Sistêmico e Redes Sociais, atua com atendimento clínico presencial e online na Singular Psicologia (Rede Social: @singular.psicologia)..
Larissa Machado Queiroz (CRP 023/951) possui formação em psicologia pelo Centro Universitário Luterano de Palmas, especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial e atua com atendimento clínico presencial e online na Allegórica Psicologia (Rede Social: @allegorica.psicologia).

 

Referências:

“FADIGA DE ZOOM” Disponível em https://www.infomoney.com.br/carreira/fadiga-de-zoom-por-que-as-videochamadas-sao-tao-cansativas-e-como-evitar-essa-sensacao/ Acesso em 04/07/2020.

HARVARD BUSINESS REVIW – Manual: How to Combat Zoom Fatigue/ Como combater a fadiga do zoom. Disponível em https://hbr.org/2020/04/how-to-combat-zoom-fatigue Acesso em 04/07/2020.

 

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