E eu corro

Pra onde eu não sei (pra onde eu não sei)

Socorro
Sou eu dessa vez

(P.U.T.A – Mulamba)

 

Dia 17 de maio de 2019, uma jovem de 21 anos, internada na UTI de um hospital em Goiânia, foi estuprada por um técnico de enfermagem (SANTANA; LOPES, 2019).

Em outubro de 2018, uma estudante foi estuprada por três alunos da UFSCar, dentro de sua moradia estudantil, após ter sido dopada (ASSIS, 2019).

Em 06 de maio de 2017, quatro jovens estupraram uma menina de 12 anos na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro (MARTÍN, 2017).

Em 21 de maio de 2016, uma adolescente de 17 anos foi estuprada por 33 homens, na Praça Seca, no Rio de Janeiro (RAMALHO, 2016).

Em 2018, o Atlas da Violência, pela primeira vez, realizou uma análise sobre a violência sexual no Brasil. Em cinco anos, o número de registro de casos de estupro dobrou. A pesquisa avaliou dados da Segurança Pública, que registraram 49.497 casos de estupro registrados pela polícia em 2016, e também dados do Sistema Único de Saúde, que contabilizou 22.918 notificações de estupro no mesmo ano. O Atlas estima que, em razão da subnotificação que caracteriza esse tipo de crime, teria havido entre 300 mil e 500 mil casos de estupro naquele ano. A pesquisa revela outra questão grave, que é denunciada também nos versos da música “P.U.T.A”, da banda Mulamba: “Painho quis de janta eu // Tirou meus trapos, e ali mesmo me comeu // De novo a pátria puta me traiu // E eu sirvo de cadela no cio”: O Atlas aponta que cerca de 51% dos casos em 2016 vitimaram crianças com menos de 13 anos de idade. Em 30% desses casos, o agressor era amigo ou conhecido da criança e em outros 30% o agressor foi um familiar próximo, como pai, padrasto, irmão ou mãe. Quando o agressor é conhecido, a violência sexual ocorreu dentro da casa da vítima em 78% dos casos.

Diante do crescente número de casos, as autoridades governamentais tentam articular meios de prevenção, como as propostas dos ‘ônibus rosa’, exclusivo para mulheres e o aumento das campanhas de incentivo a denúncia; e meios de repressão, como a mudança em 2009, do Código Penal Brasileiro, que tornou mais abrangente seu artigo 213 (na redação dada pela Lei n.º 12.015, de 2009), definindo como estupro: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, substituindo a lei anterior que considerava no Art. 213 – ”Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”.

Contudo, essas medidas são insuficientes, pois é preciso investigar como se naturaliza esse tipo de violência na sociedade. A violência sexual envolve uma construção social relativa ao papel da mulher com relação à própria sexualidade e sobre como o homem se relaciona com ela, que pode conter, em si, alguma mensagem de propagação da cultura do estupro. Tal investigação tem como objetivo verificar sob quais signos a interpretação do que é estupro é confundida, de modo intencional ou não, com qualquer direito que os homens pensam ter sobre o corpo da mulher, qualificando a dominação masculina. Essas conjunturas podem ser facilmente analisadas a partir de todo tipo de material cultural que faça qualquer tipo de menção ou alusão à mulher, desde músicas até pornografia.

 

 Relações entre música e violência

 

Primeiramente, esclarece-se que há um problema em interpretar quaisquer falas ou imagens em obras de arte e entretenimento de forma literal ou apologéticas quando citam crimes e/ou comportamentos condenáveis. Também seria leviano e reducionista atribuir às letras em questão o ensejo dos casos de estupro no país.

Porém, também se ressalta que não existe discurso inocente. Ignorar isso é perpetuar a violência. Apesar de não haver uma relação causal direta, a reprodução de um discurso violento faz parte de um sistema complexo, que legitima a violência contra a mulher: “O perigo, porém, é abrir possibilidades de ser mal interpretado ao colocar uma frase que descreve um estupro sem qualquer preocupação de construir um eu lírico e um pensamento mais complexo por trás de uma imagem tão violenta”. [1]

As formas notórias da violência advêm das relações cotidianas, os estupradores agem ancorados pelos discursos machistas que chegam até eles e são por eles reproduzidos das mais variadas formas: “A violência não é, portanto, algo em si grandioso, mas ordinário, advindo da ausência de reflexão sobre atos e condutas legitimados no tecido social”[2]. O que acontece é que a maioria do público não se dá conta de seu conteúdo violento e propaga esse discurso nos lares, nas festas, nas mídias interativas e em suas relações sociais, ampliando o consumo musical e consequentemente o lucro para o mercado midiático. Enquanto a espetacularização da violência der lucro, nenhuma mudança virá por parte dos artistas e produtoras. Os discursos que naturalizam a consolidação dos papéis sociais de gênero são os mesmo que legitimam a violência contra a mulher, incluindo músicas como as aqui retratadas.

 

Cultura do estupro

 

Para denominar determinada prática social de cultura é preciso atribuir-lhe uma série de fatores que exprimem que essa conduta é algo feito de maneira corriqueira, não listado como exceções, colocando essa ação como uma atividade humana. Nessa concepção, “em sentido amplo, cultura […] é o campo simbólico e material das atividades humanas” . [3]

Relatos de casos de estupro acontecem nos mais variados ambientes, bem como o modo de agir dos agressores são distintos de caso a caso. Os estudos feministas tem grande influência na mudança da percepção do que é considerado estupro. Hoje, sabe-se que a penetração vaginal nem sempre é uma constante nos casos de violência sexual, fazendo com que a conduta se amplie e abranja toda forma de violação da dignidade sexual da vítima sem o seu consentimento – visto que há “outras práticas de violências sexuais como o sexo oral, anal, masturbação, beijo e qualquer prática sexual que não contemple a penetração vaginal” [4].

O ponto chave para entender a crueldade da violência sexual é compreender que o estupro não é questão de sexo, mas de violência. É preciso reconhecer a independência, dignidade e autonomia da mulher perante o ato sexual para elucidar aquilo que se qualifica como estupro. Por essa percepção falha que os casos de estupro dentro do casamento são minimizados, que há uma legitimação se a vítima ingeriu bebida alcóolica, e que os casos que a vítima é masculina raramente são reportados. A falta de noção da real caracterização desse crime também,

 

Impede que o crime seja registrado; que a condição da vítima seja reconhecida e devidamente remediada; que o sistema crie meios mais eficazes de prevenção focados na educação sexual dos homens, e não apenas na prevenção das mulheres, como acontece atualmente; que seja feito um estudo mais aprofundado das causas desse fenômeno etc. [5]

 

A monstruosidade do estupro, o que marca a vítima de forma brutal e permanente é a violência com que aquela prática sexual foi cometida, é ver alguém sentir prazer com sua dor, sentir o agressor se excitar e se satisfazer sexualmente naquele desespero. Isso quando a vítima tem noção do que está acontecendo: “Em alguns casos, a violência se dá de maneira que a vítima não toma conhecimento da situação antes, durante ou depois da consumação do ato por estar inconsciente, dopada, ou não ter noção de seus direitos perante a própria dignidade”[6].

Essa inconsciência não precisa, necessariamente, existir pela ingestão de alguma substância, configurando a violência em qualquer relação sexual que não houve o consentimento expresso da mulher. Na letra do rap “Preguiça”, a mulher está dormindo: “Agora olha só como eu virei perigoso // Tira o sono // Deixa ela dormir que se ela vira, eu como // Boto o cano na goela e atiro gozo”. Não houve consentimento dessa mulher sobre a relação sexual, sendo que o agressor aguardou ela adormecer para praticar o ato. A violência também é percebida na analogia do órgão genital masculino com uma arma de fogo, sendo esta ‘arma’ atirada contra a mulher violentada.

O comportamento predatório do agressor sexual não se limita ao tipo criminal previsto no Código Penal, nem se relaciona a alguma doença, transtorno ou anomalia prevista na medicina psiquiátrica vigente. O estuprador não é – somente – aquele ser perverso que aguarda a vítima em um beco escuro: “Os estupradores encontram-se em todos os lugares e classes da sociedade. Eles reproduzem, por meio de atos, a submissão da vítima à sua vontade, transgredindo os direitos humanos mais básicos de integridade física e psicológica do outro” [7].

Os homens, de maneira geral, sabem que são mínimos os riscos de se tornarem vítimas de estupro. Há casos que até mesmo compartilham da revolta diante dos relatos de tais casos, vendo nas vítimas a projeção de sua mãe, irmã, filha, esposa. Porém, os casos rechaçados por esses homens são situações específicas, normalmente casos de estupro alarmantes, como os seguidos de morte ou contra crianças. Esses mesmos indivíduos praticam outras formas de violência sexual, até mesmo sem se dar conta.

Assim, quando as feministas afirmam que ‘todo homem é um potencial estuprador’, a sociedade se revolta contra essa afirmação. Acontece que há uma interpretação equivocada, uma leitura generalizada de que todo homem é um estuprador, quando na verdade o feminismo quer esclarecer que, do ponto de vista sociológico, esses agressores são cidadãos comuns, que desempenham corretamente outros papéis sociais, mas que praticam diferentes modalidades de uma mesma violência estrutural.

 

Nunca se conseguiu traçar o perfil do agressor físico, sexual ou emocional de mulheres. Do ângulo sociológico aqui esposado, não faz sentido procurar características individuais no agressor, quando a transformação de sua agressividade em agressão social é socialmente estimulada [8]

 

Não significa que todos os homens alguma vez praticaram ou praticarão esse ato. Apenas significa que em determinadas situações, gerada pelos mecanismos patriarcais de desumanização da mulher, todo homem pode, em algum momento, forçar uma relação sexual, sem o consentimento da mulher. Não há relutâncias quando se diz que toda mulher é uma potencial vítima de estupro, visto que a esmagadora maioria das vítimas são mulheres. É nesse mesmo sentido que o feminismo defende a possibilidade de cada homem vir a se tornar um agressor sexual.

 

Em última análise, a amostragem é compreensiva quando se percebe o quão duro é olhar para o seu pai, irmão, amigo ou conhecido com a suspeita de que, em algum momento, esse homem possa ter praticado ou possa vir a praticar tamanha atrocidade. Nesse caso, é muito mais fácil aceitar que o estuprador, via de regra, tem alguma característica ou anormalidade que os homens que temos em nosso círculo social não têm, do que admitir que qualquer homem pode vir a praticá-lo, desde que esteja moralmente justificado para isso.[9]

 

Há na sociedade uma legitimação, tolerância e estimulo à violência sexual. Isso pode ser visto no modo como os crimes são praticados atualmente. Os dois casos de estupro coletivo citados no início do texto foram registrados em vídeo e disponibilizados em diferentes mídias sociais pelos próprios agressores. Os registros – fotos, vídeos, áudios – se tornam virais, sendo compartilhados e comentados por milhares de pessoas.

A violência nessas horas não é reconhecida, nem pelos perpetradores nem por quem assiste. Os comportamentos do agressor sexual não são isolados, mas está diretamente relacionado à construção dos gêneros em si, a partir dos valores culturais hierárquicos socialmente produzidos: “Portanto, é denominado cultura do estupro o conjunto de violências simbólicas que viabilizam a legitimação, a tolerância e o estímulo à violação sexual”[10].

E também,

 

A cultura do estupro é uma consequência da naturalização de atos e comportamentos machistas, sexistas e misóginos, que estimulam agressões sexuais e outras formas de violência contra as mulheres. Esses comportamentos podem ser manifestados de diversas formas, incluindo cantadas de rua, piadas sexistas, ameaças, assédio moral ou sexual, estupro e feminicídio. Na cultura do estupro, as mulheres vivem sob constante ameaça. [11]

 

Nesses vídeos, fotos, áudios, a violência é exposta como uma representação de poder: ‘’arte significativa dos discursos de erotização do outro implica ou mesmo depende de assimetrias de poder”[12]. Assim, importante evidenciar a relação se poder e sexo dentro da sociedade.

 

Sexo e poder

 

Ao tratar de sexo e poder, é preciso ter em mente quem é o detentor desse poder dentro das relações sociais. Esse poder é heteronormativo e falocêntrico: pertence ao homem – e mais especificamente, ao seu falo. É o falo que faz do homem um ser completo, absoluto e dominante sobre todos que são considerados inferiores: crianças, mulheres e homens cuja masculinidade não atinge os padrões.

Grande parte desse problema está na repressão sexual feminina, que se contrapõe com o incentivo sexual masculino. Isso cria um paradoxo: os homens são incitados ao sexo desde a mais tenra idade, enquanto as mulheres recebem instruções totalmente contrárias. Considerando relações heterossexuais, a incoerência é nítida, pois existe um homem que é incitado ao sexo e uma mulher que é ensinada a cultuar a virgindade.

O modo como isso é administrado dentro da sociedade é bastante simplista: há distinções sociais entre a ‘mulher para casar’ e a ‘mulher para a cama’. A ‘mulher para a cama’ é a figura objeto, retratada em letras como “Surubinha de Leve”: “Pode vir sem dinheiro, mas traz uma malandra, aí! // Brota e convoca as tchuca, brota e convoca as tchuca // Mais tarde tem fervo, hoje vai rolar suruba”. A objetificação da mulher é vista já no primeiro verso, quando na falta do dinheiro, aquele convidado deve trazer uma mulher. Mas não é qualquer mulher, tem de ser a mulher ‘malandra’. A ‘malandra’ é a mulher escolhida para ser levada onde tem ‘fervo’, pois ela já tem sua dignidade questionada.

Essa distinção, “recebe validação por intermédio do modo como é socialmente adotada, onde é reafirmada através da diferença de tratamentos dispensados às mulheres representantes das diferentes classes sociais e raciais”[13].

A sexualidade, assim como o status social, raça, status financeiro, e quaisquer outros adjetivos qualificantes, classifica as pessoas tanto de acordo com a sua própria percepção de realidade quanto com o modo que a sociedade percebe seu comportamento sexual: “Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos mais dotados de maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias”[14].

 

A vítima perfeita

 

Adotando uma compreensão butleriana, partimos de um modelo de performatividade, que é sustentada por processos de regulação. Esses mesmos processos de regulação constituem um terreno dos corpos necessários, que torna impensável e sem vida outro conjunto de corpos, que não importam do mesmo modo. Mais particularmente, as condições sob quais os corpos materiais, sexuados, tomam forma tem relação com a sua existência, com a possibilidade de serem apreendidos e a sua legitimidade.

Para Judith Butler, corpos que não importam são corpos abjetos. Tais corpos não conseguem se materializar, ou recebem uma materialização diferenciada do humano, pois não são inteligíveis (não tem um argumento epistemológico) e não tem uma existência legítima (não tem um argumento político ou normativo).

A autora rejeita a ideia dos corpos como pré-discursivos. Na verdade, os discursos habitam os corpos, se acomodam em corpos. Não existe uma construção discursiva de um lado e um corpo vivido de outro. Os corpos carregam discursos como parte de seu próprio sangue, e ninguém sobrevive sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso. Assim, as normas regulatórias do sexo e a legitimação da violência trabalham de uma forma performativa para construir (ou não construir) a materialidade dos corpos, a serviço da consolidação do imperativo heterossexual.

Essa matriz excludente que define os detentores do poder exige a produção simultânea desses corpos abjetos, pois formam o exterior constitutivo para que os corpos que importam, que se materializam, tenham o domínio do sujeito. É preciso refletir sobre como e para que finalidade os corpos são construídos e como e para que finalidade os corpos não são construídos.

Dentro da cultura do estupro, visualizamos os corpos que importam e os corpos abjetos.

 

Ouviu-se um grito agudo engolido no centro da cidade

E na periferia? Quantas? Quem?

O sangue derramado e o corpo no chão

Guria

Por ser só mais uma guria

Quando a noite virar dia

Nem vai dar manchete (nem vai dar manchete)

Amanhã a covardia vai ser só mais uma que mede, mete, e insulta

 

A ordem social determina quais formas de violência são culturalmente consentidas e quem pode ser considerado inocente. A vítima de estupro apenas é considerada como vítima após um aval da sociedade, que cria regras morais que determinam se ela pode se considerar violentada.

A moralidade surge nos discursos (e nos corpos) como uma estrutura ideológica capas de determinar contra quem a violência é legítima.

 

A qualidade da pessoa a quem a violência é feita aumenta ou diminui o crime. Assim, uma violência feita a uma escrava ou a uma doméstica é menos grave que a feita a uma moça de condição honesta. A distância social modula a escala de gravidade dos crimes em uma sociedade de classes, distribuindo o peso das violências segundo a condição de suas vítimas. A posição social é decisiva. A dignidade do ‘ofendido’ orienta o cálculo e indica a extensão do mal [15]

 

A dignidade do ofendido é medida por certas regras de conduta, que são inseridas na socialização da mulher desde a infância. A mulher aprende que tipo e tamanho de roupa vestir, que maquiagem usar, como se comportar nos ambientes públicos, quais os horários de sair de casa, entre tantas outras prescrições morais, que depositam nela a responsabilidade sobre os atos dos terceiros. Quando a mulher desvia dessas regras, a violência é legitimada. O dolo, a intenção do agressor, de violar a integridade sexual do outro, é, em parte, transferido para a vítima, que teria, de algum modo, dado ensejo aquele ato:

 

Lá vai a marionete

Nada que hoje dê manchete

(E ainda se escuta)

A roupa era curta

Ela merecia

O batom vermelho

Porte de vadia

Provoca o decote

Fere fundo o forte

Morte lenta ao ventre forte

 

 

A transferência de responsabilidade pelo estupro ocorre por três justificativas principais, encontradas também nas letras das músicas escolhidas: a legitimação do estupro pelo álcool, a desqualificação da negativa da vítima e a erotização de meninas.

A sociedade não possui as mesmas exigências morais sobre consumo de álcool para homens e mulheres. A embriaguez afasta a má conduta masculina – a culpa é do álcool, o homem não tinha noção do que estava fazendo – mas amplia a culpa feminina – nesse caso o álcool é inocente, a culpa é da mulher.

Nas letras das músicas, pode-se perceber que o álcool é usado para facilitar a investida masculina, como na letra de “Empurra Whisky Nela”: “Não sei mais o que faço // Não paro de pensar nela // Vou chamar ela pra beber // E empurrar Whisky nela”. A ingestão de álcool faz com ela consente com a relação sexual: “Empurra Whisky nela, empurra Whisky nela // Whisky nela, que ela beba, ela libera // Empurra Whisky nela, empurra Whisky nela // Whisky nela, que ela beba, ela libera”.

Fica evidente nas letras que essa ingestão de álcool, apesar de ser, em um primeiro plano, uma escolha da mulher, é incessantemente incentivada pelo homem, como se percebe da repetição de “Empurra Whisky nela”. Essa insistência tem o objetivo de aumentar o nível de embriaguez, o que faz a mulher menos consciente de seus atos, facilitando a violência.

O incentivo de álcool também é visto na letra de Surubinha de leve: “Só uma surubinha de leve, surubinha de leve // Com essas mina maluca // Taca a bebida, depois taca a pica // E abandona na rua”. A violência é explícita quando diz que, além da intenção de embriagar a vítima para manter a relação sexual, o agressor abandona essa mulher violentada. A ideia do abandono faz da mulher um objeto, uma coisa, que após o uso, foi descartado.

Na desqualificação da negativa feminina, até se reconhece a violência praticada, mas esta é atenuada, como é visto na música sertaneja: “Essa gatinha dá um de difícil // Eu já saquei o seu artifício // Eu vi, ela é santinha, já tô desejando ela // Bebendo, farreando, curtindo com a galera”. A negativa faria parte de uma simulação da mulher paquerada, para que não abrisse mão do recato num primeiro momento, cabendo ao homem “transformar” a negativa em permissão.

A negativa também seria uma maneira de provocação da mulher, como se depreende da música “Assédio”: “Com prazer me provoca // Põe água na boca, me dá esperança // Na sequência me esnoba e volta o assédio // Parece criança”.

E no fim do samba – e quem dera fosse só na letra – essa provocação justifica a violência: “Qualquer dia me invoco // Lhe pego na raça // Tal qual Mike Tyson // Vai gritar, vai gemer // Vai chorar de prazer // E depois me acusar // O que posso fazer? // O que eu vou fazer com o meu coração insano? // Humano também pode ser tirano”.

Ainda, há o estímulo ao abuso sexual infantil em diversas músicas nacionais. O termo “novinha”, por exemplo, massivamente encontrado nas letras de funk (e seus ritmos derivados, como o funknejo[16]), é usado para designar meninas crianças e adolescentes, sempre de forma muito sensual e erótica. Há inúmeras críticas às letras de funk, justamente pela erotização dessas meninas. O problema surge porque a crítica não se reserva para essas letras, mas acaba culminando em diversos preconceitos contra o estilo musical em si. Sabe-se que isso acontece pelo fato do funk ser um ritmo oriundo da periferia, popularizado por artistas negros e pobres.

Por conta disso, traz-se aqui para exemplificar o estímulo ao abuso infantil a música “Me Lambe”. A mulher apresentada na letra em questão é, na verdade, uma menina, cuja puerilidade é ironizada: “O quê? O que que essa criança tá fazendo aí toda mocinha? // Vê, já sabe rebolar, e hoje em dia quem não sabe? ”.

Os limites entre o aceitável e o inaceitável nessas circunstâncias com adolescentes são tênues, sendo definidos de modo situacional e relacional. Porém, ao retratar a menina com características sensuais, “Me Lambe” a retira da infância/adolescência e a coloca como uma mulher que tem plena vivência de sua sexualidade: “Me fala a verdade // Quantos anos você tem? // Eu acho que com a sua idade // Já dá pra brincar de fazer neném”.

O desvanecimento da inocência é marcado pelo contexto do universo infantil na letra, com o parque de diversões, a analogia do órgão genital masculino com um picolé e a menção da boneca: “Como a vista é linda da roda gigante, é // Tão grande // Acho que ela viajou que eu era um picolé // Me lambe // No parque de diversões foi que ela virou mulher // Das forte // Menina pega a boneca e bota ela de pé”. A menina tornou-se mulher ‘das fortes’ através da relação sexual com alguém de idade adulta.

A banalização da violência encontra respaldo no alívio cômico da letra. Mesmo quando o autor é, em um primeiro momento, recriminado por uma autoridade, não há qualquer indicio de culpa: “Sinto, amigo, lhe dizer, mas ela é de menor // Isso é crime // Seu guarda, se não fosse eu, podia ser pior // Imagine”. Isso porque, afinal, foi a menina que deu a deixa: “Se ela der mole, eu juro que eu não faço nada”.

Ainda, a suposta recriminação não se sustenta, uma vez que esse outro homem legitima a violência: “O homem de cassetete disse, quando me algemou // Que ela só tinha dezessete, que o pai dela era doutor // E que se fosse eu, ainda faria igual // Se fosse no ano que vem, ia ser normal”.

 

A violência sexual está na cultura. Música é também cultura

 

 

Pra ver como é severo o teu veneno
Eu faço do mundo pequeno
E Deus permita me vingar

(P.U.T.A. – Mulamba)

 

Notamos que a violência sexual tem profundas conexões com as práticas cotidianas e os discursos dos diferentes meios sociais. A relação da música, enquanto representação cultural e social, correlaciona-se com a violência e as relações de poder que existem na sociedade, bem como a seletividade social que determina, numa concepção butleriana, quem importa o suficiente para ser considerado vítima.

A análise da letra de seis músicas, de diferentes ritmos musicais, com ampla repercussão midiática, cujos discursos remetem à violência sexual descortinam um panorama preocupante. Nesse processo, letras e performances das músicas em questão contribuem para a construção de um contexto cultural que naturaliza a violência sexual contra a mulher.

Não se pretende aqui, criminalizar estilos musicais. Pelo contrário, a escolha de ritmos diferentes se deu para demonstrar que o discurso violento não é particular de uma cultura musical. Entretanto, é crucial questionar práticas misóginas nessas representações culturais, uma vez que a arte é também uma representação da sociedade. O limite, na verdade, é tênue. É difícil entre os artistas identificar quando termina a denúncia e começa a espetacularização: “Por isso, é comum que músicas, séries e filmes apareçam no centro de polêmicas quanto a sua parcela de responsabilidade na disseminação da cultura do estupro”[17].

Não se pode negar que a música opera com grande influência na construção de subjetividades, embora produza discursos cuja ideologia, por vezes, passa despercebida. Mas exatamente por isso, pela falta de reflexões do que está sendo ouvido/cantado, há a necessidade de compreender a dinâmica da música e cultura popular nas práticas cotidianas.

Criminalizar uma prática cultural isolada não atenua, muito menos soluciona o problema; é mero delírio. Contudo, mostrar a violência expressa e discutir o potencial de dano em grande parte de suas letras e em suas performances contribui para o estabelecimento de relações de gênero mais justas e menos violentas. É preciso um enfrentamento de todos os discursos que promovem desigualdades sociais e incitam a violência. A luta contra esse sistema patriarcal, que alimenta a violência contra a mulher na sociedade, é uma batalha diária e constante.

 

Rhaissa Garcia. Advogada, feminista, pós-graduanda em Direito e Processo Penal Econômico, membro do Grupo de Estudos Contemporâneos em Execução Penal do Centro Universitário Campo Real, geminiana que gosta de saber de tudo um pouco, (des)construindo todo dia aquela velha opinião formada sobre tudo.

 

[1] CAVALCANTI, 2018.

[2] ARENDT, 1999 apud BRILHANTE, GIAXA, BRANCO, et al, 2019, p. 08.

[3] CHAUI, 1986, SOUSA, 2017, p. 14 apud p. 10.

[4] SOUSA, 2017, p. 11.

[5]SOUSA, 2017, p. 24.

[6] SOUSA, 2017, p. 13.

[7] SOUSA, 2017, p. 12.

[8] SAFFIOTI; ALMEIDA, 1995, p. 138 apud SOUSA, 2017, p. 25.

[9] SOUSA, 2017, p. 24-25.

[10] SOUSA, 2017, p. 13.

[11] ONU, 2016.

[12] GREGORI, 2003 apud BRILHANTE, GIAXA, BRANCO, et al, 2019, p. 5.

[13] SOUSA, 2017, p. 14.

[14] FOUCALT, 1988, p. 98.

[15] VIGARELLO, 1998, p. 23 apud SOUSA 2017, p. 17.

[16] Funknejo é a junção das palavras ‘funk’ e ‘sertanejo’, ritmo que vem ganhado repercussão no país por misturar os dois ritmos musicais em sua melodia.

[17] MIRANDA; ESSINGER, 2016

 

Referências

 

ASSIS, Fabiana. ‘Eu me sinto abandonada’, diz aluna da UFSCar que denunciou estupro em moradia há 6 meses. G1 Globo, São Carlos e Araraquara, 7 maio 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2019/05/07/eu-me-sinto-abandonada-diz-aluna-da-ufscar-que-denunciou-estupro-em-moradia-ha-6-meses.ghtml. Acesso em: 30 maio 2019.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. Tradução de Sérgio Milliet.

BUTLER, Judith. Bodies that matter: On the Discursive Limits of “Sex”. New York: Routledge, 2011.

BRUNINHO. Intérprete: Bruninho, Davi, Spártaco. Empurra whisky nela. 2013. (2 min 55 s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TPubgUYhCHM>. Acesso 27 mai. 2019.

CONNELL, Raewyn, PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. SP: NVersos, 2015. Tradução de Marilia Moschkovich.

BRASIL. Decreto-Lei n.º2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 28 mai. 2019.

BRILHANTE, Aline Veras Morais et al. Cultura do estupro e violência ostentação: uma análise a partir da artefactualidade do funk. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, [s.l.], v. 23, 21 jan. 2019. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/interface.170621>. Acesso em: 27 mai. 2019.

CAVALCANTI, Amanda. O tiro do “fator choque” de Nog saiu pela culatra. Vice. 2018. Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br/article/nekzyk/nog-rima-estupro-preguica-xama>. Acesso em 28 mai. 2019.

DIGUINHO. Intérprete: MC Diguinho. Só surubinha de leve. 2018. (4 min 19 s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_brDu9ycur4>. Acesso 27 mai 2019.

ESSINGER, Silvio; MIRANDA, André. ‘Respeita as mina’: a cultura do estupro nas artes. O Globo. 2016. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/respeita-as-mina-cultura-do-estupro-nas-artes-19393083>. Acesso em 29 mai. 2019.

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade – Livro I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

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FRANCHINI, Bruna Santiago. O que são as ondas do feminismo? 2018. Disponível em: <https://medium.com/qg-feminista/o-que-s%C3%A3o-as-ondas-do-feminismo-eeed092dae3a>. Acesso em: 10 jan. 2019.

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