“Eu odeio meu corpo e o tamanho dos meus seios.”

Eu disse isso sobre o meu corpo durante muito tempo. Não é pelo fato de eu ter me formado em psicologia que eu estaria imune de sofrer, odiar algo ou até mesmo precisar enfrentar e desconstruir um padrão normativo estabelecido. Antes de qualquer título acadêmico, eu sou gente, pessoa que sente que nem você.

Ainda criança, eu sentia que não me encaixava. Apesar de ser uma garota branca, meu corpo atravessava um formato diferente dos que eu via perto de mim. Além do corpo, meus interesses eram outros. Enquanto algumas amigas gostavam da cor rosa, babados ou brilho, eu gostava de preto, roupas de cores únicas e nada de estampas ou cores coloridas. Na adolescência, enquanto meninas da minha idade estavam na onda do salto alto e maquiagens diferentonas, eu curtia mesmo era all star, bandana e munhequeira. Depois de um tempo veio a sandália de couro, e até hoje ela é a minha preferida. Um adendo: não estou dizendo que uma coisa é melhor que a outra, apenas ressaltando alguns momento e formas que me sentia diferente daquilo que eu enxergava e convivia.

Quando rolava um passeio para algum clube ou praia, geralmente eu não entrava na água. Foi daí que comecei a dizer “ah, eu odeio tomar sol, gosto de ficar aqui quietinha”, mas na verdade eu estava morrendo de calor e louca para pular na água. Imagina o calor que faz por aqui, em Palmas, no Tocantins? Pois é. Mas foi nesse tempo que minhas inseguranças começaram a me perturbar com relação ao meu corpo e eu procurava uma forma de poder escondê-lo. Costumava andar com os braços cruzados e camisetas folgadas porque achava meus seios grandes comparados com os de algumas amigas. Isso era motivo de certa vergonha e um incômodo descomunal. E assim foi sendo construída minha vida e existência, atravessada por uma sensação de inadequação, porque, para mim, eu parecia “errada”.

Na escola, eu nunca fui uma garota, como é que eu posso dizer… “desejada” por alguma outra pessoa. Eu era sempre a amigona, super comunicativa e que “ajudava todo mundo”. Precisei desenvolver outras formas de me fazer presente, de ser vista, porque nesse momento era tudo que eu buscava: identidade e pertencimento. A ideia que me vendiam do “corpo ideal” nunca foi uma realidade, e durante algum tempo eu sequer entendia isso.

Meu corpo, minha relação com ele e como o percebia, foi marcado por diversos contextos ao longo da minha vida. A violência silenciosa foi uma pauta durante um tempo, pois, quando criança, na transição para a adolescência, partes do meu corpo foram tocadas por uma pessoa que era confiável até ali. Foi preciso um bom tempo para poder entender e ressignificar esse episódio de abuso vivenciado. Acredito que essa experiência tenha atravessado minha subjetividade, pois, a partir desse dia, me lembro de ter “aprendido” a sentir medo e não querer ficar sozinha num mesmo ambiente que outro homem. Poucas pessoas sabem disso, afinal, quem iria acreditar em uma criança de sete anos?

Eu também era “indisciplinada” em questão de exercícios físicos e alimentação “saldável”. Foi isso que eu ouvi de alguém, algum dia. Hoje eu paro e penso nisso e sinto um alivio. Que bom que eu não era rígida comigo, apesar de viver cercada por pessoas que faziam dietas.

Não gostava de fazer algo por conveniência, não gostava de nada que me incomodasse de algum modo. Esse comportamento apareceu com mais frequência na adolescência. Eu estava de fato em busca do meu lugar no mundo. Eu só sei que naquela época tudo era meio confuso. Eu só sei que fui indo por um caminho mais coerente de algum modo, mesmo ainda carregando comigo as inseguranças, as vergonhas que vez ou outra apareciam, fui me desenvolvendo e meu corpo também.

Adulta e na faculdade, meu corpo já estava “formado”, como costumam dizer. Aquela ali era eu. Não tinha mais o que ser feito, entende? Eu poderia lutar muito contra aquela pessoa e estereótipo, eu poderia gastar muito tempo e dinheiro (que nem tinha na verdade), tentando me colocar de modo forçado num estilo de vida que nem fazia sentido para mim, para tentar me adequar. Eu poderia ter feito dietas malucas ou sei lá mais o quê, mas não, eu não me coloquei nesse caminho.

Às vezes eu rolo a barra de descoberta do Instagram e fico olhando alguns corpos diferentes do meu, com seios menores que o meu, mais alta do que eu e penso: como eu seria num corpo daqueles? Eu seria mais feliz? Mais satisfeita? Eu não sei. Eu acho que na verdade eu seria outra pessoa, com outras vivências, com outros dissabores e passaria por outros enfrentamentos possivelmente.

Bem, a nossa ideia sobre as corporeidades se constrói socialmente, culturalmente, politicamente e a partir de crenças também. São como uma espécie de piloto automático, a gente só vai vivendo e reproduzindo aquilo que nos disseram ser verdade e ser possível.

A gente vai vivendo a partir das experiências que vamos tendo, e elas podem se tornar fonte de inomináveis sentimentos, inclusive parte do que experimentamos tem relação com nossas faltas, nossas buscas por (in)satisfações, lugares de pertencimento e sentidos de vida.

A gente nem sequer questiona, porque parece que não há espaço e lugar para questionamentos e não nos damos conta para aonde estamos nos empurrando. Até que, também porque somos desconstruídos e estamos em processos diferentes, começamos a perceber os incômodos, começamos a repensar a ideia do corpo ideal que nos apresentaram e que consumimos naquele filme ou feed da rede social, começamos a ficar inquietos, e parece que não estamos no lugar certo. A sensação pode ser de inadequação, pois parece que não nos encaixamos definitivamente.

A gente até tenta, tenta e tenta de novo, mas aí começa a “machucar”, porque percebemos que não cabemos mais naquele padrão, naquela ideia e naquele ideal. Começamos a entrar em contato com um tipo de dor, sofrimento, angústia e desespero. Não nos reconhecemos mais, nos sentimos perdidas e sem muitas expectativas. Nos frustramos, não nos aceitamos e muitas vezes partimos para um abismo autodestrutivo, nos punimos porque não conseguimos seguir daquele jeito. E porque a punição parece ser o caminho da correção, para esse corpo “errado” e fora do padrão.

Não é fácil, não é leve e no começo (no meio e no fim) é doloroso. A indústria da beleza tenta a todo custo nos convencer que estamos “enlouquecendo”, sua comunicação é violenta e coercitiva, e nos diz a todo custo o que é certo, bonito e belo. Esse caminho é árduo, aprender a se olhar por outras perspectivas, a amar quem se é e como é, descobrir o que se quer ser, é um processo gradual e muitas vezes lento.

Na verdade, cada uma de nós tem seu próprio ritmo e manejo, quando a assunto é lidar com questões tão complexas e enraizadas quanto às crenças que costumávamos ter sobre o jeito certo de se colocar no mundo.

Abaixo, um grito de basta! Um pedido de chega! Precisamos que queixem nossos corpos em paz.

Um corpo que habita em mim, eu que habito num corpo, um corpo que existe onde eu existo em mim. Quão terrível é o lugar que te colocam, que te obrigam ser e que te esmagam estar. Perten(ser) à um corpo que não cabe num mundo que nada está suficiente, é uma grande loucura. Essa inquietação de nunca achar que encontrou o lugar de pertencimento nos traz enorme sofrimento.

Um lugar onde o tempo todo estão tentando nos vender uma fórmula, uma solução, um estereótipo e um padrão, só pode ser um péssimo lugar então. Esse lugar existe, mas gostaria que fosse irreal. Não se pode nem viver em paz nesse lugar de moldes, formas e clichês surreais.

Chega! Ouviu bem? CHEGA!

Esse mundo, desse jeito, nem deveria existir! Isso que chamam de “padrão”, esse critério do que cabe ou não cabe, não deveria! Quem é que lucra com meu sofrimento de querer caber? Quem é que rende fortunas nesse sofrimento de quando eu acho que precisar perten(ser) a um padrão de corpo clichê?

Olha, não dá mais! O grito está entalado na garganta, na minha e na sua! Apenas parem de fiscalizar nossos corpos. Parem de nos olhar como se estivéssemos erradas, faltando ou passando algo, quebradas, precisando de conserto. Nosso corpo não é mercadoria, não é embalagem e nem enfeite. Nosso corpo não é para servir de fetiche alheio, nem mesmo para ser deixado de escanteio.

Nos deixem viver nos corpos que temos, nos corpos reais que temos. Apenas o corpo possível que temos e queremos. Nós estamos lutando todos os dias, vencendo várias batalhas internas, externas e estéticas, sobre o consumo inconsistente do corpo “perfeito”. Lutamos simplesmente nesse mundo banal e insatisfeito.

Queremos existir no corpo que nos cabe, que nos representa, a vida real que vivemos aqui e agora! Apenas parem de dizer, de infinitas maneiras, em incontáveis lugares, que corpo é esse que preciso ter. A luta não cessa. A desconstrução não vai parar. Que continuemos a cuidar daquele que nos sustenta, único e possível lugar ideal, o meu corpo presente e existente no meu mundo real.

 

Larissa Machado Queiroz (CRP 023/951) possui formação em psicologia pelo Centro Universitário Luterano de Palmas/TO, especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, atua com atendimento clínico presencial e online, oferece mentoria para psicólogas e orientação de carreira. Fundadora da Allegórica Psicologia (Rede Social: @allegorica.psicologia)

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