Meu filho tinha cinco meses e chorava horrores. Corri para o banheiro porque sabia que a fralda estava cheia e precisava ser trocada. Me deparo com um banheiro chique, bem limpo, cheiroso, mas sem nenhum fraldário ou espaço infantil. Com a cabeça ecoando o choro de um bebê irritado, tento pensar rápido sobre o quê, como e onde trocar esta criança. Balançando ele no sling, abro a mochila e tiro dela tudo que minhas costas aguentavam por já saber que não acharia fraldários: trocador, toalhinhas, algodão, óleo corporal, fralda limpa, garrafa de água e lá vamos nós. Arrumo o cenário na bancada (gelada) de mármore e inicio o embate de trocar uma fralda encharcada de xixi em uma fração de tempo suficiente para conseguir controlar a criança. Depois de muito suor e lágrimas (de ambos os lados), criança trocada, mochila arrumada e a cabeça tonta por mais um dia vivendo na invisibilidade.

Ter um bebê foi meu caminho mais escancarado de enxergar a invisibilidade feminina. Um dos exemplos dessa invisibilidade estava na não existência de fraldários em todos os locais que ia (com exceção do shopping, claro, lugar que me acomoda perfeitamente para que eu consuma). Isso era um reflexo da minha não-existência, significava que o local estava me dizendo: “não queremos bebês aqui”. Esses ambientes que não me enxergavam eram quiosques, restaurantes, lanchonetes ou, pior ainda, locais de vida ativa para conhecimento e discussão, como o banheiro lindíssimo que descrevi há pouco, localizado em um enorme salão de palestras de um renomado hospital e onde estava havendo um debate sobre violência obstétrica. Ou seja, tratava-se de um espaço que falava sobre mães e seus corpos, mas que seu banheiro gritava “não queremos mães!”, afinal, só cabia aos independentes da história – homens-pais amparados por cuidadoras mulheres 24 por 7 – conversar sobre a minha vivência.

Quando me percebi como não vista, a pergunta que saltou na minha mente foi: “Por que vocês não me vêem?” Eu me angustiava em saber que eu era um pequeno ponto na linha de um tempo de invisibilidade que se perde de vista. Minha vó não foi vista, minha mãe também não foi vista, agora chegou minha vez. O que faço? Primeiro de tudo, eu te explico o que é essa invisibilidade, afinal eu existo, o choro do meu filho existe, o sufoco do meu suor tentando trocar fralda de maneira improvisada sempre irá existir, mas em certos momentos eu desapareço. A sociedade escolheu me fazer sumir. Segundo Júlia Tomas em “A invisibilidade social, uma construção teórica”, a invisibilidade social “vai depender (entre outras coisas) da percepção que os outros têm de mim. Se o outro não me vê é certamente porque eu não existo para o outro, no entanto existo fisicamente, logo sou visível. A não-percepção do outro é o resultado da sua vida da qual eu não faço parte.”No entanto, não se trata de uma observação pessoal, mas sim de uma postura coletiva. Ela continua dizendo que “existe, por um lado, intersubjetividade entre mim e aquele que eu não vejo: o outro partilha mutuamente o sentido do mundo comigo e sabe que eu não o vejo. Por outro, existe uma intersubjetividade coletiva: nós não vemos o outro”.

Além disso, o não-ver depende de uma construção de mundo constituída e normatizada:

“Seguindo esta lógica, assumimos que o ato de “não ver” é uma atividade orientada significativamente. Se agir implica escolher, então o não-reconhecimento de outrem torna-se num ato intencional, sem porém querer dizer que é voluntário. Para compreender a existência de uma alteridade invisível é necessário analisar a coerência do sistema de conhecimento quotidiano, ou seja as sequências e relações típicas que contribuem para a constituição deste fenómeno social.”[1]

Sobre a invisibilidade social da mulher, há ramificações que incluem a invisibilidade de raça, classe, orientação sexual, igualdade salarial e de oportunidades, da violência e abuso domésticos, e tem a que trago aqui: a invisibilidade materna, mais especificamente em como os espaços não são acolhedores para mães e suas crias. Falando dela, lembro bem quando eu frequentava um espaço comum e coletivo da religião que fazia parte. Era uma fazenda enorme, bonita, de mais de 30 anos de existência e famosa por grandes festivais religiosos. Pessoas do mundo inteiro já a visitaram e os maiores líderes da religião frequentavam este local. Meu filho tinha uns seis meses quando estive lá e o drama de sempre: nada de fraldário. Eu já sabia disso e estava preparada para a situação, levei uma mochila equipada (e muito pesada) e mantive contatos pré-estabelecidos com moradores locais para conseguir uma cama, um móvel, um ambiente minimamente higienizado e confortável para trocar meu pequeno. Tudo encaminhado e me deparo com algo que não imaginava: não há frutas. Mesmo sendo uma fazenda, eles não tinham pomares e nenhum quiosque vendia frutas. Meu filho berrava e eu sabia que aquilo era fome. O leite materno já não era suficiente. Desesperada, pedi ajuda a uns amigos que compraram frutas na cidade mais próxima. Mais de uma hora depois, meu filho se deliciou com duas mangas maduras. Cansada, sem forças, eu enxerguei mais uma vez a invisibilidade batendo em minha porta. Será que sou a única que passou por isso nesse lugar? Há mães e bebês em toda volta. Há crianças que foram bebês e frequentaram o mesmo ambiente. O que aconteceu? Todos choraram e todas as mães foram acolhidas improvisadamente como eu? Se isso se repete tanto, porque ninguém faz nada?

É claro que não sou a única a vivenciar histórias de invisibilidade materna, problema que perpassa a vida das mulheres por mais diferentes que sejam. Por exemplo, o Plenário do Senado até 2015 não possuía banheiro feminino, mesmo com a presença de mulheres desde sua inauguração em 1960. Até o momento dessa reforma (que demorou 55 anos!), senadoras precisavam sair do plenário para usar um banheiro do restaurante mais próximo [2].  O congresso nacional até hoje não possui um espaço de acolhimento para bebês e crianças, fraldário ou creche para dar suporte às servidoras presentes no espaço. A Deputada Talíria Petrone (PSOL) recentemente fez um post em suas redes sociais apontando sua rotina exaustiva no parlamento brasileiro, muitas vezes na companhia da sua filha Moana[3]. Ela diz:

Toda reunião com criança fica mais bonita. O plenário da Câmara fica menos hostil quando levo Moana Mayalú comigo. Mas se isso é potente, não tem nada de romântico. O Congresso Nacional não é um espaço preparado pra nós mães e nossas crianças. Raros são os espaços que estão prontos pra nos receber, essa é a verdade. Moana fez cocô e não tem trocador em nenhum banheiro. Moana ficou cansada, não tem nenhum espaço pra ela ficar um pouco longe do barulho. Quantas servidoras não tem o que fazer com filhos enquanto trabalham no Congresso noite afora? Quantas terceirizadas mães devem ficar desesperadas quando a sessão avança pela madrugada? Mas o que fazer, já que a licença maternidade é só de 4 meses? O que fazer se não tem espaço de cuidado noturno pras crias? O que fazer se, pra maioria, sequer tem creche durante o dia? Não importa se há milhares de mulheres trabalhando na Câmara e no Senado diariamente. Mulheres mães que se virem! Sei que vão dizer que aquilo lá não é lugar pra criança. E eu respondo de volta: mais do que ninguém sei disso. Mas não só os espaços de trabalho deveriam sim acolher mães e bebês, como muitas vezes não temos outra opção. Hoje eu não tive outra opção. Estou exausta. Um ano pesado, uma pauta densa e antipovo sendo votada e – hoje sem outra opção – com uma bebê no braço. Onde estão os filhos de todos os homens que ali estão? Quando vamos fazer essa engrenagem de moer mães parar? Quando vamos discutir seriamente licença parental, ampliação de licença maternidade, reconhecimento de trabalho reprodutivo e cuidado materno como trabalho? Quando vamos lembrar que se não tem creche é a mulher mãe que se lasca? Quando o parlamento brasileiro – o centro da política do país – vai dar prioridade a pautas que envolvem o direito de gestar, parir e maternar com dignidade? Quando vamos parar, aliás, de fomentar a lógica da maternidade compulsória e romântica? Esses quandos precisam ser já. Há muitas mães desesperadas que não podem nem devem esperar. E há um mundo que só funciona com o sacrifício de um monte de mulher, a maioria mães, a maioria pretas. E já chega de se sacrificar. Definitivamente, nenhuma de nós quer padecer no paraíso. Fica a dica. 😉

 

 

Recentemente, uma blogueira de Santa Catarina, Yasmin Castilho, declarou sua decisão de não convidar nenhuma criança ao seu casamento e revoltou muitas mães [4] que sabem bem que impedir a presença de seus filhos retrata o quadro natural de como a sociedade não as enxerga. Daí em diante, podemos listar muitos outros locais em que a invisibilidade dá seus sinais pela ausência contínua de suporte e apoio a um ser que continua transitando de bolsa pesada, cansaço nos olhos e braços dormentes: a mãe.

Olhando esses espaços podemos entender a simbologia da visibilidade social. Não é sobre a lógica prática de que existem mães circulando, que elas podem estar com seus bebês e crianças porque simplesmente não possuem rede de apoio para ampará-las. Não é porque os corpos maternos existem, fraldas precisam ser trocadas e bebês precisam ser amparados. O fato da visibilidade se manifestar – ou não – depende das articulações sociais e de poder que o espaço preconiza. Quanto mais poder social, de fala, de discurso um grupo possui (os visíveis), mais ele ganha garantias para amparar suas necessidades. Quando falo isso, penso em todas aquelas necessidade que lhe cabem, não somente as físicas, mas também dignidade, respeito, qualidade de vida e muito mais. E, no outro lado, os invisíveis são descartados das pautas de importância e relevância dos grupos sociais.

 

 

Voltando ao exemplo que dei das mães na fazenda religiosa que eu frequentava, o fato de sermos invisíveis não significava que éramos inúteis. Pelo contrário! O espaço queria a nossa presença para ocupar as inúmeras atividades voluntárias. Servíamos para o bem comum da comunidade (contanto que nossos filhos não incomodassem as palestras com seus choros estridentes). Mas como essa conta fecha? O espaço quer a nossa presença, capacidade de trabalho, doação de tempo, nosso dinheiro mas não quer nossa maternidade. A resposta ecoa no olhar de cada pessoa que nos vê com desdém quando nosso bebê incomoda: “Ele está chorando? Dê seu jeito e deixe seu filho com alguém. Ele está com a fralda cheia? Arranje um local para trocá-lo. Ele está com fome? Traga você mesma a comida que ele precisa.” A invisibilidade, contraditoriamente, tem olhos. Ela nos enxerga como pessoas que precisam resolver na sua particularidade o que o coletivo não propõe. O coletivo está a serviço dos visíveis. Aos invisíveis cabe apenas improvisar/adaptar/ajustar ao que espaço tem a oferecer. Se não tem, faça acontecer na sua singularidade.

É a partir dessa sistemática de funcionamento da invisibilidade que quero te convidar a mudar o trajeto dessa engrenagem. Jogue para o coletivo o que é dito ser de demanda privada. Viabilize sua existência como parte do todo, alegando que você ocupa espaços e precisa ser amparada assim como todos que compartilham do coletivo. Fiz isso nos últimos anos que passei frequentando essa religião. Em todos os locais que ia, eu questionava, demandava, reclamava onde estavam os fraldários, os espaços infantis. Escancarei essa necessidade em todos os debates e discussões e, claro, a força da invisibilidade me fez não ser ouvida em muitos momentos, mas outras mães me ouviam – e muito! – passando a enxergar o seu entorno de outra forma. Elas descortinaram uma nova altivez, passando a reclamar que sua existência é válida, pertinente e que os ajustes não deveriam vir de necessidades pessoais, mas da movimentação do coletivo.

Eu compreendo o quão cansativo pode ser demandar uma necessidade básica que deveria ser vista como parte do coletivo, simplesmente por ser uma realidade palpável. Infelizmente, não é desta forma que nossa sociedade foi construída, pelo contrário, quanto mais as mães se sacrificam, mais exalta-se estas dificuldades como parte da glória da maternidade. Mas o aviso está dado. Somos mães, não somos invisíveis e – incorporando a fala da Talíria Petrone – “definitivamente, nenhuma de nós quer padecer no paraíso”.

 

[1] TOMÁS, Júlia. A invisibilidade social, uma construção teórica. Colóquio “Crise das Socializações”, p. 1-12, 2012.

[2] Fonte: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/01/plenario-do-senado-tera-banheiro-feminino-55-anos-apos-inauguracao.html

[3] Fonte: https://www.instagram.com/p/CXfJgRWrLjF/

[4] Fonte: https://ndmais.com.br/internet/blogueira-de-itajai-gera-polemica-ao-proibir-criancas-no-casamento-entenda/

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