Produto da cultura de massa, denominada nona arte no mundo das artes, as histórias em quadrinhos (HQs) mobilizam cerca de 20 milhões de leitores brasileiros por mês, segundo dados divulgados pela Associação dos Cartunistas do Brasil (ACB) em 2018 (BRASIL). Nascidas das páginas de jornais no século XIX, as HQs desenvolveram, ao longo de sua existência, um mundo próprio com códigos bem definidos, criando o que Umberto Eco (2011) chamou de semântica dos quadrinhos. Através de convenções solidificadas a cada passar de década, as HQs criaram o seu próprio mundo artístico, que convenciona representações resistentes ao tempo graças às repetições de seus padrões. O conceito de convenção referido aqui é aquele visto em Howard Becker (1972), no qual as convenções são constituídas através de ações coordenadas pelos atores de um determinado mundo artístico.

É nesse mundo artístico quadrinístico que se convencionou o homem como o herói protagonista, musculoso, altivo e poderoso. O personagem herói que referencia a masculinidade do leitor. Por sua vez, a mulher descrita pelas mãos dos quadrinistas, representa a feminilidade sensual, curvilínea e subserviente.

Segundo o célebre e influente editor chefe da Marvel, Stan Lee (1922-2018), “Obviamente, não destacamos os músculos nas mulheres. Mesmo não sendo fraca, a mulher é desenhada para parecer mais delicada e suave, fazendo contraste com a versão masculina, muscular, angulosa” (LEE, 2014, p. 44). Segundo as instruções do manual, a mulher deve ser sempre menor que o homem nas HQs, exceto pelos seios. Embora essas orientações de Stan Lee para o desenho da personagem feminina tenham sido originalmente escritas em 1984, o manual “Como Desenhar Quadrinhos no Estilo Marvel” (2014) foi traduzido e publicado no Brasil em 2014 e continua atuante como guia para desenhistas de HQs.

Assim, as mulheres desenhadas nas histórias em quadrinhos são frutos de paráfrases, conforme observou a historiadora Selma Regina Nunes Oliveira (2007) em seu livro “Mulher ao Quadrado”. Esbeltas, curvilíneas, possuidoras de seios fartos e empinados, com pernas longas e pés, que mesmo descalços parecem sempre estar calçados de salto alto, essas mulheres se convertem, essencialmente, em adornos para as páginas de HQs. Entre permanências e ressonâncias essas personagens seguem se repetindo através de representações que ecoam os modelos desenhados desde o primórdio da nona arte. Seja mocinha, heroína ou vilã, a personagem mulher está subordinada às expectativas de feminilidade compulsória. Segundo Oliveira “As curvas dos seios, da cintura e das nádegas são combinadas no formato ampulheta, e esse encadeamento de ondulações é a própria representação do sexo e, portanto, da feminilidade.” (OLIVEIRA, 2007, p. 153). A feminilidade bem demarcada nos quadrinhos serve como oposição e afirmação à masculinidade do herói viril e do leitor modelo – ainda presumido como homem branco e heterossexual. Por tal, as orientações para o desenho do corpo da mulher quadrinística conservam características que pouco mudaram nesses quase 200 anos de existência das HQs.

Norteado pelas reflexões quadrinísticas de Selma Regina Nunes Oliveira (2007), o presente artigo propõe uma análise na representação da mulher nos quadrinhos nacionais, independentes ou de pequenas editoras, publicados na segunda década do século XXI. A pesquisa aqui apresentada foca nas poéticas de auto-referenciação e, portanto, dá maior atenção às produções quadrinísticas feitas por mulheres, sobretudo as afro-brasileiras. Desse modo, a auto-referenciação surge aqui como uma maneira de entender de que forma a mulher representa a mulher nos quadrinhos nacionais. A fim de melhor analisar a situação da mulher no ambiente das histórias em quadrinhos, partimos do paradigma do feminismo interseccional, observando de que modo a quarta onda do feminismo influenciou na criação das personagens estudadas.

Os objetos desta pesquisa são as personagens Manuela, da HQ “Domingo tem Macarrão”, da quadrinista maranhense Dika Araújo (2018); Luzia, da HQ “Quando Você Foi Embora”, da quadrinista mineira Ana Cardoso (2018) e Manuela, da HQ “Maré Alta” (2018), da quadrinista paulista Flávia Borges (2018). É válido ressaltar que as quadrinistas apresentadas se autodeclaram negras. As personagens analisadas também são negras.

 

Arte, HQ e Cultura de Massa

 

Em seu livro “What Art Is”, o filósofo Arthur Danto (2013) retornou a inquietante pergunta “o que é arte?”, e desse modo abordou as tentativas de se criar um conceito universal para essa categoria. Para outros filósofos como Morris Weitz, por exemplo, arte ainda é um conceito aberto e passível de contradições:

Nenhum dos critérios de reconhecimento é um critério definidor, nenhum deles é necessário ou suficiente, uma vez que podemos afirmar que algo é uma obra de arte negando ao mesmo tempo qualquer uma dessas condições, podemos mesmo negar aquela que tradicionalmente se tomou como básica, nomeadamente, a condição de ser um artefacto. (WEITZ, 1956, p. 8)

Possuindo caráter transgressor, a arte, como vista em Weitz (1956), pode assumir diversas faces, assim, uma obra de arte pode ser considerada como tal em uma cultura e não ser reconhecida como arte em outra. O tema “o que arte é?”, dialoga com a questão “as histórias em quadrinhos são arte?”, que por muito tempo permeou os pensamentos dos estudiosos do mundo artístico. Houve um momento na história em que as HQs foram relegadas ao título de kitsch, sendo distanciadas das artes ditas nobres, para então, posteriormente, serem defendidas por autores como Umberto Eco, conforme vemos em seu livro “Apocalípticos e Integrados” (2011). Hoje essa indagação já não suscita tanta discussão. Um exemplo do fim dessa discussão é o espaço na lista das artes conquistado pelas histórias em quadrinhos no século passado, ganhando o posto de Nona Arte. No entanto, foi-se a dúvida sobre HQs serem ou não arte e ficou a dúvida do que seriam exatamente as HQs.

Para o pesquisador de HQs Nobu Chinen nenhuma das tentativas de definir o que são as histórias em quadrinhos foram bem-sucedidas. Arte sequencial é uma definição largamente utilizada, segundo Chinen (2011, p. 7). Mas não é o cinema também arte sequencial? “Narrativas sequenciais desenhadas” também falha segundo Chinen, porque os desenhos animados também se encaixariam nessa definição (2011, p. 7). Scott McCloud, influente pesquisador dos quadrinhos tentou, em seu livro “Desvendando os Quadrinhos”, uma definição nem um pouco curta: “Imagens pictóricas ou de outra espécie justapostas em uma sequência deliberada, com a intenção de transmitir informações ou produzir uma reação estética no espectador/leitor” (MCCLOUD apud CHINEN, 2011, p. 7), mas ele também falhou, segundo Chinen, já que as fotonovelas se encaixariam perfeitamente nessa definição e elas não são quadrinhos (2011, p. 7). Por fim, em seu livro “Linguagem HQ”, Chinen tenta dar a sua contribuição ao escrever: “O importante é que todos [os quadrinhos], sem exceção, contêm uma narrativa, e é isso que todo autor de quadrinhos precisa ter em mente” (2011, p. 7).

Assim como a contradição e a amplitude do conceito de arte e a maleabilidade e incerteza do conceito de HQ, o conceito de Cultura de Massa também apresentou inconsistência, segundo alguns autores, chegando a ser considerado genérico, ambíguo e até mesmo impróprio pelo teórico Umberto Eco (2011, p. 8). Contudo, é esse o conceito que norteia sua obra “Apocalípticos e Integrados”, uma coletânea com diversos ensaios do autor. Nascida na “presença das massas” (ECO, 2011, p. 8) a Cultura de Massa dispõe abundantes quantidades de imagens, sons e objetos a todos e a todo o momento. Afirmando a Cultura de Massa como nosso universo, Eco a caracterizou com inexorável:

Ninguém foge a essas condições, nem mesmo o virtuoso, que, indignado com a natureza inumana desse universo de informação, transmite o seu protesto através dos canais de comunicação de massa, pelas colunas do grande diário, ou nas páginas do volume em paperback, impresso em linotipo e difundido nos quiosques das estações. (ECO, 2011, p. 11)

Eco se aprofunda ainda ao propor que a própria natureza imprecisa do conceito de Cultura de Massa deriva da imprecisão da definição do que é Cultura. Assim, para o autor, a Cultura de Massa representa um hibridismo onde não se tem certeza nem do que seria cultura e nem do que seria massa (ECO, 2011, p. 15).

Considerando os apontamentos do antropólogo sueco Ulf Hannerz (1997) em seu artigo “Fluxos, Fronteiras, Híbridos: Palavras-chaves da Antropologia Transnacional”, é possível pensar a Cultura como possuidora de fluxos que perpassam as diversas culturas, se deslocando no tempo, alterando o espaço, sendo capazes de gerar confusões e inovações (1997 p. 15). Ultrapassados os limites – as descontinuidades e obstáculos – que se desenham às margens dos fluxos culturais, observa-se a ocorrência dos hibridismos, onde as culturas se fundem numa amalgama de experiências e objetos que desafia as tentativas de defini-las completamente.

 

Quem é a mulher na HQ?

 

No livro “Problemas de Gênero – Feminismo e Subversão de Identidade”, a filósofa estadunidense pós-estruturalista Judith Butler (1990) aponta o caráter performático do gênero denunciando-o como um produto cultural e não natural. Assim, a autora afirma o gênero como um constructo cultural, sendo a mulher ou o homem um processo, um devir, uma fantasia, passível de reformulações. O intuito da crítica de Butler, porém, não é negar a política representacional, mas sim “[…] formular, no interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de identidades” (BUTLER, 1990, p. 22).

Em uma sociedade como a brasileira, permeada pela cultura patriarcal e pelo racismo, ainda é necessário que se afirmem representações e identidades, para que se tracem estratégias de enfrentamento às opressões de gênero e de raça. Contudo, partir do pressuposto de que a feminilidade é uma atuação cultural, permite que se desconfie das convenções que estruturam e normatizam a figura da mulher. Quando em 1851 a abolicionista negra, escritora e ativista dos direitos das mulheres Sojourner Truth (1797-1883) fez seu célebre discurso “Não sou eu uma mulher?” ela lançou luz às diferenças entre ser uma mulher negra e ser uma mulher branca nos EUA do século XIX. Para os homens resistentes ao sufrágio feminino, as mulheres não deveriam votar por não serem capazes sequer de subir em uma carruagem sem que fossem auxiliadas por eles. Logo, segundo os mesmos, o mundo da política seria muito duro para as mulheres. Em resposta Truth proferiu seu notável discurso: Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, serem levantadas sobre valas e ter o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, ou me deu qualquer “melhor lugar”! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meus braços! Arei a terra, plantei, juntei a colheita nos celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim! E não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem – quando eu conseguia comida – e suportar o chicote também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei meu luto de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? (TRUTH, 1851)

Ponderando as palavras de Truth é possível concluir que características atribuídas à natureza feminina, como a fragilidade e a inabilidade, não tinha a ver com a natureza do corpo da mulher, mas sim com uma construção cultural onde a mulher é frágil e inapta. Vale ressaltar que a mulher frágil era, especificamente, a mulher branca, pois à mulher negra não eram reservados quaisquer tratos de amabilidade.

Quando transpassada pela opressão de raça, a feminilidade é esvaziada de suas características tidas como naturais. A delicadeza e a fragilidade deixam de ser consideradas inatas quando se trata da mulher negra. Desse modo, uma vez revelado o caráter performático da feminilidade, é possível duvidar do conceito que define o que é ser mulher. É nessa possibilidade de desconfiança, que se torna possível pensar uma mulher quadrinística que foge às regras de feminilidade compulsória.

Assim, em 1851, Truth mostrou como o conceito de mulher era branco. Em 1988, no texto “O Corpo e a Reprodução da Feminilidade: Uma Apropriação Feminista de Foucault”, Susan Bordo (1988) mostrou como o conceito de mulher é gordofóbico. Atualmente, o lesbofeminismo mostra como o conceito de mulher é heteronormativo, e assim seguem-se os vários apontamentos que demonstram a inconsistência do conceito de feminilidade.

Baseando-se no discurso de Truth e nas reflexões de Danto, Chinen, Eco, Hannerz e Butler, é possível desconfiar dos conceitos e definições que se mostrem cristalizados. Então, uma vez que seja possível suspeitar dos conceitos que representam todo um mundo artístico é plausível suspeitar também de suas convenções, inclusive aquelas que definem os corpos e as narrativas das mulheres nas HQs.

 

Quem são as mulheres fazendo HQ?

 

Embora em menor número e raramente gozando de visibilidade, as mulheres produzem HQs desde o século XIX. Trina Robbins (2013), uma quadrinista pioneira no movimento underground comix nos EUA, defendeu essa tese em seu ensaio “Women in Comics – An Introductory Guide”. De acordo com Robbins havia uma quantidade significante de mulheres estadunidenses desenhando quadrinhos ainda no início do século XX (2013. p. 1). Rose O’Neill desenhava quadrinhos já em 1896; Dale Messick foi a criadora do bem sucedido quadrinho Brenda Starr, de 1940; Tarpé Mills foi a criadora da super-heroína Miss Fury em 1941 e, por fim, Jackie Ormes foi a primeira mulher negra a desenhar uma história em quadrinhos em um jornal sindicalizado, em 1937. Rose O’Neill conseguiu um feito excepcional ao se tornar uma quadrinista de destaque no começo do século XX. Entretanto, apesar do sucesso de O’Neill, o mundo das HQs continuou avesso às mulheres, o que levou Dalia Messick e June Tarpe Mills a usarem pseudônimos masculinos para ingressarem no mercado de HQ daquela época. Dalia Messick tornou-se Dale Messick, June Tarpe Mills tornou-se Tarpé Mills. No Brasil a caricaturista Nair de Teffé também recorreu a um pseudônimo aparentemente masculino a fim de publicar suas charges provocativas. Nair então se tornou Rian.

 

Nair de Teffé

Primeira mulher caricaturista do Brasil, Nair de Teffé

 

Os nomes masculinos atuavam como uma solução para essas mulheres ingressarem no mundo das histórias em quadrinhos. O nome masculino era um validador, que possibilitava a publicação de obras, que do contrário jamais seriam vistas pelo grande público.

Jackie Ormes, por sua vez, correu o risco de ser excluída desse mundo artístico quadrinístico por experienciar ao mesmo tempo o intercruzamento de dois preconceitos: o de gênero e o de raça. Felizmente essa exclusão não ocorreu, e Ormes publicou quadrinhos em dois jornais sindicalizados de sua época: o Pittsburgh Courier e o Chicago Defender. No entanto, a publicação de suas tirinhas só foi possível através desses jornais, porque eram dirigidos à população afrodescendente dos EUA.

Porém, ainda que algumas dessas artistas tenham quebrado as barreiras sexistas e racistas do mundo das HQs, ainda se nota uma aparente escassez de mulheres nesse mundo artístico em específico. Tomando como exemplo um livro de mais de 500 páginas, a “Enciclopédia dos Quadrinhos” de Goida e André Kleinert (2014), é possível notar a disparidade enorme entre a quantidade de homens citados e a quantidade de mulheres citadas. Elas não chegam sequer a um terço dos nomes mencionados ali. Ao fazer referência a quadrinista italiana Lina Buffolente, Goida e André Kleinert comentam brevemente a dificuldade que é encontrar mulheres quadrinistas (2014, p. 72). É possível que essa escassez se deva tanto às questões sexistas, o que faria as mulheres não conseguirem êxito ao tentar ingressar no mundo das HQs, quanto as questões de invisibilidade, onde algumas quadrinistas usaram pseudônimos masculinos ou inevitavelmente não alcançavam notoriedade nesse espaço artístico ainda engessado por preconceitos.

Foi a historiadora estadunidense Linda Nochlin (1971) quem discutiu em seu ensaio “Por que não houve grandes mulheres artistas?” a questão do conceito de genialidade. Segundo Nochlin (1971) o conceito de gênio artístico foi moldado majoritariamente sob a ótica androcêntrica, portanto, tentar discutir genialidade feminina ou masculina é debater, inevitavelmente, sob os termos androcêntricos do conceito de gênio (NOCHLIN, 1971, p. 8). Esforçar-se para listar as mulheres que quebraram as barreiras sexistas, seria também submeter-se a um julgamento de qualidade onde o validador ainda é padronizado conforme a ótica masculina. Esse apontamento de Nochlin, ainda que feito em 1971, é facilmente observado na contemporaneidade. Focando no mundo das HQs, vale citar três exemplos onde sexismo e/ou invisibilidade ocorreram: o caso do Festival de Angoulême, em 2016; as listas que elencam os grandes quadrinistas e o caso da “Graphic MSP Tina – Respeito” (2019), de Fefê Torquato, em 2019.

Em 2016 aconteceu a quadragésima terceira edição do Festival de Angoulême, estimado evento de HQs. Extremamente respeitado no meio quadrinístico, o festival foi atingido por uma polêmica: apenas quadrinistas homens haviam sido indicados ao prêmio máximo daquela edição e isso havia gerado um boicote fomentado pelo grupo BD Égalité (ativistas pela igualdade de gênero nas histórias em quadrinhos). Vários artistas indicados ao prêmio aderiram ao boicote, entre eles o cartunista francês Sattouf, ex-Charlie Hebdo e o quadrinista estadunidense Chris Ware. Na ocasião, a ausência de mulheres na indicação, causou indignação até em figuras políticas, como a da então Ministra da Cultura da França, Fleur Pellerin que explanou: “Existem designers talentosos e seria injusto, imoral, ser deixado de lado por causa de seu gênero.” (PELLERIN, 2016), segundo a publicação “Angoulême 2016: pluie, polémique et bousculade” do jornal Le Figaro on-line. Conforme consta na lista, de todos os vencedores do Grand Prix do Festival de Angoulême, até 2019, apenas duas mulheres foram contempladas com a premiação máxima: a francesa Florence Cestac, em 2000, e a japonesa Rumiko Takahashi, em 2019. A também francesa Claire Bretécher recebeu uma variação do grande prémio em 1983, o chamado Grand Prix Anniversary. O Grands Prix do festival vem premiando quadrinistas desde 1974.

A invisibilidade que assola obras produzidas por mulheres, também é observada nas listas que elencam os ditos bons artistas. Em 2017, a revista “Super Interessante publicou uma matéria listando os 13 quadrinistas brasileiros com maior sucesso no exterior”. Dentre eles, nenhum era mulher. Nem mesmo a experiente Adriana Melo, com suas inúmeras passagens pela gigante DC e pela Editora Titan, foi citada. Em outra lista, também da Super Interessante, intitulada “10 Quadrinistas Brasileiros para Ler Agora”, apenas Sirlene Barbosa (2016), roteirista da HQ “Carolina”, foi brevemente citada. Dos quadrinistas listados na matéria “Treze Quadrinistas Brasileiros Que Você Precisa Conhecer”, feita pela revista Galileu em 2016, apenas três artistas eram mulheres e dentre essas três mulheres nenhuma era negra.

O terceiro caso a ser exposto aqui é o da HQ Graphic MSP “Tina – Respeito”, fruto do selo MSP, de Maurício de Souza. “Tina – Respeito” foi escrita e desenhada pela catarinense Fefê Torquato (2019). A polêmica que envolveu a revista começou antes mesmo da mesma ser lançada. Tão logo o editor Sidney Gusman publicou a capa da edição, vieram as críticas que atacavam o traço da desenhista Torquato, reclamando da falta de sensualidade na personagem. Através das redes sociais, leitores de HQs se mostraram inconformados com as formas da personagem, com sua postura e com suas roupas. Culparam o movimento feminista por Tina não atender mais a expectativa de feminilidade e sensualidade. Abordando um tema pouco retratado nas HQs, o do assédio sexual no trabalho, “Tina – Respeito” trouxe uma reflexão sobre a realidade de muitas mulheres. Vale citar que, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Datafolha em 2018, 42 % das mulheres brasileiras declaram terem sido vítimas de assédio sexual.

 

Tina - respeito.

HQ “Tina- respeito”, por Fefê Torquato.

 

Ainda com um longo percurso a percorrer para se tornar mais inclusivo, o mundo das HQs ainda é palco de confrontos entre as representações engessadas e as novas significações e abordagens propostas. É nesse cenário, onde até a mulher branca ainda encontra dificuldade para se afirmar, que as mulheres negras se veem duplamente afetadas. Portanto, nas observações adiante, o mundo das HQs é analisado conforme a ótica da interseccionalidade.

 

Mulheres negras na HQ

 

Em 1984 a antropóloga, filósofa e intelectual belo-horizontina Lélia Gonzales já denunciava o duplo fenômeno do racismo e do sexismo dirigido à mulher negra. Em seu artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, Gonzalez (1984) assume seu lugar de fala como mulher negra e denuncia a naturalização do racismo velado pelo mito da democracia racial brasileira. Ainda que o conceito de interseccionalidade ainda não tivesse sido cunhado naquela época, era dele que Gonzalez falava ao denunciar a dupla opressão vivida pela mulher negra. Nesse país, crente de sua democracia racial, a afrodescendente era vista apenas como a “[…] cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta.” (GONZALEZ, 1984, p. 226).

Embora já fosse apontado por ativistas dos direitos das mulheres negras antes de receber esse nome, o conceito de interseccionalidade só passou a ser chamado dessa forma a partir do artigo “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics” escrito pela pesquisadora e ativista estadunidense Kimberlé Crenshaw (1989). No texto, Crenshaw usa os exemplos de casos de afrodescendentes que ao denunciarem o racismo e o sexismo de empresas como a General Motors Corp. tiveram seus pleitos indeferidos pelo fato de as cortes estadunidenses serem incapazes de reconhecerem a junção do sexismo e do racismo (CRENSHAW, 1989, p. 141). Quando aplicada ao mundo das HQs, a interseccionalidade possibilita a observação de detalhes como a ausência de mulheres negras nas listas dos grandes desenhistas brasileiros, a escassez de personagens negras protagonistas, ou a estereotipização da afrodescendente.

Ainda que existam em pequeno número, e que só atualmente algumas quadrinistas negras tenham alcançado alguma notoriedade no mundo das HQs nacionais, essas artistas autodeclaradas afrodescendentes, têm aparecido cada vez mais na internet. Poderoso instrumento da quarta onda do feminismo, as redes sociais possibilitam a autonomia de seus usuários dando voz e visibilidade a grupos antes relegados a invisibilidade. Os grupos de financiamento coletivo, como o Catarse, e a possibilidade de imprimir e distribuir HQs de forma autônoma, são outros facilitadores que contribuem para a divulgação de quadrinhos feitos por pessoas distantes do mercado mainstream, como as mulheres negras. É nesse cenário que mulheres jovens, como as quadrinistas Ana Cardoso, Dika Araújo e Flávia Borges, despontam com suas artes, que representam as mulheres negras como protagonistas não estereotipadas. A seguir, estão algumas considerações feitas por essas quadrinistas em entrevista concedida a autora deste artigo no ano de 2018.

 

quando você foi embora

“Quando você foi embora”, de Ana Cardoso/ Imagem Divulgação

 

A quadrinista mineira Ana Flávia Cardoso (nascida em 1987) é formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Artista gráfica, ilustradora, sócia-diretora do Estúdio e Escola de Desenho Black Inc, em Belo Horizonte, ela é autora da HQ “Quando Você Foi Embora” (2018). Para Ana Cardoso a mulher negra ainda é apresentada de forma estereotipada nas HQs. Segundo a quadrinista, esse problema de representatividade se deve ao baixo número de artistas negras e negros no mercado das HQs. Apesar de estar inserida no meio quadrinístico e ter relativo êxito como artista, Cardoso acredita que esse espaço ainda carrega características sexistas, elitistas e eurocêntricas. Sua personagem, Luzia, é uma jovem mulher negra que trabalha como confeiteira e vive sozinha em uma zona urbanizada. Desenhada no estilo cartoon, essa protagonista tem a pele escura, nariz largo, cabelo cheio e lábios grossos. Seu corpo não é curvilíneo e tão pouco tem formato em ampulheta. Luzia é retratada como uma pessoa dinâmica, empenhada no trabalho, que faz uso de bicicleta para se locomover pela cidade, tem afinidade com animais e é cercada de amigos. Porém, a questão que se destaca em sua narrativa é o êxito intelectual, pois durante o decorrer de sua história, a personagem recebe uma bolsa de estudos para instruir-se em outro país. O sucesso da personagem na narrativa suscita um discurso empoderador. Não se trata apenas de uma mulher negra independente, trata-se também de uma afrodescendente com êxito intelectual e profissional. E isso, por si só, é uma demonstração de empoderamento.

A ilustradora e quadrinista maranhense Diane Araújo (nascida em 1993), conhecida no meio artístico como Dika Araújo, é formada em Design Gráfico pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Como quadrinista ela desenhou e arte-finalizou a HQ “Quimera” (2016), do extinto selo Pagu Comics, participou da produção da HQ “Amor em Quadrinhos” (2017) e é autora do quadrinho “Domingo tem Macarrão” (2018), publicado na coletânea de histórias românticas lésbicas “Melaço” (2018). Quando questionada acerca da representação da mulher negra nos quadrinhos, Dika, assim com Ana Cardoso, considera as representações insuficientes, pois quando é representada, essa mulher é construída através da ótica de um homem branco. Ela pondera que, nessas representações feitas sob a ótica androcêntrica branca, a mulher negra raramente tem pele retinta e geralmente é hipersexualizada. Porém, ela acredita que as recentes ondas de problematização possam frear a constante enxurrada de imagens que representam mulheres brasileiras como objetos. A personagem Manuela, de Dika Araújo, é uma jovem mãe solo, lésbica, que mora com sua mãe e sua filha e está começando um novo relacionamento amoroso. Ela tem cabelos levemente cacheados, nariz largo e arrebitado, e pele negra. A inovação no desenho de Manuela acontece na representação da mulher negra corpulenta. Com formas arredondadas, braços grossos e volume na região abdominal, ela representa as formas corporais de grande parte das mulheres brasileiras. Manuela é apresentada como uma jovem agitada, bem humorada e com forte aspiração familiar. No papel de mãe solo Manuela representa uma parcela considerável de mães brasileiras.

 

Melaço

Ilustração de Dika Araújo, da HQ “Melaço”

 

A quadrinista e ilustradora freelancer paulistana Flávia Borges (nascida em 1996), também conhecida com Breeze Spacegirl no meio virtual, estreou no mundo dos quadrinhos com a HQ “Maré Alta” (2018). Para Borges, embora haja avanços no tocante à representação da mulher negra nas HQs, ainda há um longo percurso a ser percorrido para que a afrodescendente possa experienciar alguma paridade representacional. A artista acredita que esse problema decorre do senso comum de que mulheres, principalmente as negras, não consomem quadrinhos. Sua personagem, Manuela, apelidada Manu, é apresentada como uma jovem lésbica, negra e corpulenta.

Seu cabelo, de cor preta, é farto e está sempre solto. Seu nariz é largo, sua pele é colorida num tom de marrom levemente avermelhado. Ela possui, ainda, manchas de concentração de melanina nos cotovelos. Assim como a Manuela de “Domingo tem Macarrão” (2018), a Manu de “Maré Alta” (2018) é ágil, animada e sorridente. Tendo seu corpo e roupas coloridos em tons quentes, essa personagem se destaca nas páginas de tons frios dessa HQ que aborda a depressão.

Cada uma das personagens apresentadas foge às convenções representacionais comuns nos corpos e narrativas das mulheres quadrinizadas. Tanto Dika Araújo quanto Flávia Borges optaram por representar personagens protagonistas gordas, que se distanciam da esbelteza compulsória observada nas HQs em geral. Já Ana Cardoso optou por representar uma mulher negra com êxito profissional e intelectual. Em um produto da cultura de massa, que no começo do século XX ainda representava afrodescendentes com ares de blackface (rostos pintados de preto, olhos esbugalhados e lábios enormes e vermelhos), e que ainda os descrevia como sendo, em sua maioria, malandros preguiçosos, coadjuvantes ou vilões, as artes das quadrinistas aqui apresentadas representam a construção de novas significâncias do negro nas HQs.

 

Maré Alta

“Maré Alta” é a primeira produção independente de Flávia Borges (também conhecida como Breeze Spacegirl)

 

Mudanças na representatividade

 

A quarta onda do feminismo, iniciada no começo do século XXI, foi impulsionada pela popularização das redes sociais, como o Facebook (criado em 2004), e trouxe consigo maior divulgação dos diferentes feminismos, como o feminismo negro e o feminismo interseccional. Nesse cenário de nova efervescência do movimento, difundiu-se o discurso de empoderamento que chegou até quadrinistas como Ana Cardoso, Dika Araújo e Flávia Borges. 

Quando essas quadrinistas negras desenham e escrevem mulheres também negras, elas fazem uma auto-referenciação que afasta suas personagens dos estereótipos, dando-lhes, além disso, o protagonismo. Entretanto, para que tais mudanças tenham ocorrido tanto na sociedade quanto no mundo específico das HQs, convenções foram quebradas e conceitos foram questionados. Selma Regina Nunes Oliveira, ao analisar as paráfrases observadas nas HQs, postulou a polissemia como aquela que “[…] traz o deslocamento e a ruptura de processos de significação.” (OLIVEIRA, 2007, p. 183). Desse modo, de forma indireta ou direta, são essas desestabilizações das significâncias, das convenções, e dos conceitos que se convertem nos mecanismos que movimentam as representações em direção às mudanças.

 

Nataly Costa é graduada em Licenciatura em Educação Artística: Habilitação Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes/UFRJ. Suas áreas de pesquisa abrange quadrinhos, mulher e raça-social.

 

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